Thursday, 14 January 2010

LULA + LULA + PT

Capa: Próximas eleições colocarão à prova teses que reconhecem ou negam importância ao prestígio pessoal.
A força do carismaPor Carla Rodrigues, para o Valor, do Rio
15/01/2010
A história brasileira é pontilhada por lideranças consideradas carismáticas, que vão de d. Pedro II a Jânio Quadros, passando por Getúlio Vargas e desaguando em Luiz Inácio Lula da Silva. Embora faça parte dessa grande família de políticos, "nunca na história deste país" houve um presidente como Lula. "Ele é um fenômeno único. Não se encontra na política brasileira outro líder que tenha condensado tanta popularidade em tão pouco tempo", afirma o cientista político Renato Lessa, do Iuperj, para quem a popularidade de Lula não pode ser comparada nem com a do momento áureo de Getúlio. "Lula é popular num ambiente democrático, em que todo mundo pode dizer o que quer".
Com um departamento de imprensa e propaganda, o famigerado DIP, braço da censura acoplada ao incensamento de sua figura onipresente, Vargas detinha o monopólio da comunicação com as massas. Dessa forma, dava-se no ditador a confluência do carisma e do populismo, que tão frequentemente se alimentam um ao outro - embora não necessariamente em ditaduras.
Para o sociólogo alemão Max Weber, o carisma é a qualidade pela qual alguém é colocado à parte das pessoas comuns e é tratado como se dotado de poderes ou qualidades sobrenaturais, sobre-humanas, ou, pelo menos, excepcionais. Não são traços encontrados entre pessoas quaisquer. São considerados de origem divina, ou qualificados, mais terrenamente, como exemplares. Os ungidos são tratados como líderes, completa Weber.
Acervo UH/Folha Imagem
Getúlio Vargas e Ademir Menezes, da seleção de futebol, seguram a taça ganha pelos brasileiros no campeonato sul-americano, em 1952
Esses privilegiados podem, como pôde Getúlio, exercitar seu carisma em práticas de populismo, que se define pela relação direta do líder com as massas. Há variações, mundo afora, de resultados que brotam dessa comunicação sem passagens intermediárias típicas de democracias representativas. Esse populismo mais de uma vez constituiu, como parece ter acontecido na época de Vargas ditador, uma espécie de primeiro momento de expressão política, ou propiciador dele, para os pobres de um país.
Para o cientista político Francisco Weffort, um dos fundadores do PT e ex-ministro da Cultura no governo Fernando Henrique Cardoso, carisma e liderança populista não se equivalem, nem devem ser tratados como sinônimos. "Carisma é um conceito da história religiosa, são os católicos que obedecem a quem tem carisma, como se essa pessoa representasse a palavra de Deus. Carisma não tem nada a ver com política."
AP
O presidente Lula pode transformar parte de sua grande popularidade em votos para Dilma, mas o carisma certamente fará falta à sua candidata
Weffort acredita que não é possível comparar Lula a Getúlio, nem classificá-lo como populista. "O Lula não é um populista. E, se for, não é um populista clássico", avalia, reconhecendo no governo, porém, um traço que poderia ser considerado populista: o que ele chama de distributivismo social. Mesmo identificando essa semelhança, Weffort rejeita a classificação de populista para Lula com o argumento de que as políticas sociais que beneficiam a massa são uma característica dos sistemas democráticos. "Todos os políticos precisam dar atenção ao fato de que é a massa quem decide. E, na democracia, o político precisa encontrar um jeito de agradar à massa."
Os eleitores "deste país" (expressões do falar de carismáticos costumam popularizar-se) darão resposta, este ano, à intenção de Lula de transferir sua popularidade e fazer seu sucessor, vitória até hoje só obtida por Getúlio em 1945, quando elegeu o presidente Eurico Dutra, um não carismático absoluto.
"Transferência de voto não é uma coisa tão simples, mas pode ser que tudo que aprendemos sobre isso não funcione nesse caso porque é o Lula", avalia a diretora executiva do Ibope Inteligência, Márcia Cavallari. Ela explica que, por tudo que se conhece, nas pesquisas de opinião, sobre transferência de votos, Lula não alcançaria a mesma façanha de Getúlio em 1945. Mas, pelas peculiaridades do presidente, essa é uma hipótese a ser considerada. Márcia só está certa de que a transferência não é automática e costuma acontecer somente com uma parte dos votos que supostamente iriam para o candidato original.
Lessa também acredita na possibilidade de Lula transformar um tanto de seu prestígio em votos para Dilma Rousseff. "Ele pode transferir uma parte dessa popularidade e levá-la para o segundo turno." Para Lessa, no entanto, é muito difícil pensar em continuidade política quando se troca o governante. "As escolhas são muito ligadas às pessoas."
Márcia observa que, em muitos lugares e épocas, "a criatura rompeu com o criador" - ou seja, depois de eleito, o político que deveria representar continuidade desligou-se de seu mentor e ignorou os compromissos assumidos na campanha. "O eleitor aprende com isso."
Uma das principais razões para que seja difícil imaginar o comportamento do eleitor está no fato de que, desde a primeira eleição redemocratizada, em 1989, Lula sempre foi candidato. Para o cientista político Jairo Nicolau, colega de Lessa no Iuperj, a singularidade da não participação de Lula numa eleição ainda não pode ser dimensionada. "Dilma nunca passou por uma eleição, não se pode prever o que vai acontecer com essa proposta de continuidade sem o político que a representa. Como tudo na política brasileira é muito em torno da pessoa, o eleitor não acredita em continuidade sem o político."
Além do mais, nem Dilma Rousseff, nem José Serra, os dois principais nomes para a sucessão de Lula, se encaixam no perfil de liderança carismática capaz de emocionar o eleitorado. Lessa acha ótimo. "São alternativas mais técnicas, que vão substituir o voto do coração. Ai do país que precisa de grandes líderes para ser governado."
Mas há também quem acredite que a candidatura de Marina Silva pode decolar justamente nas asas da preferência do eleitorado por políticos que aliem suas plataformas políticas a uma trajetória pessoal singular. Márcia lembra que Marina tem uma história de vida muito parecida com a de Lula, mas afirma que, além do carisma, é preciso ter condições concretas de disputar, como tempo de TV, estrutura partidária e de campanha. "Ela pode ser o Lula daqui a três eleições."
Para a historiadora Ângela Castro Gomes, da FGV, que reconhece em Marina uma liderança carismática, "engana-se quem pensa que o carisma vem apenas da grande capacidade de oratória. Carisma tem a ver com a trajetória de vida do político e com a forma como essa trajetória é apresentada. É uma colagem entre quem é o candidato com o seu programa de governo".
Ser carismático não é condição para se ter sucesso na política. Está aí o exemplo da eleição do prefeito Gilberto Kassab, em São Paulo, que era vice de Serra quando o atual governador deixou a prefeitura para candidatar-se ao Palácio dos Bandeirantes. "É um diferencial, uma característica a mais, um atributo natural que já foi considerado muito importante, mas é só mais um. Um político que não seja carismático não está condenado ao fracasso", avalia Nicolau.
O historiador Carlos Guilherme Mota associa liderança política carismática a atraso. "Líderes messiânicos e personalidades fascistas ou totalitárias começam com o uso de carisma, e logo depois encantam-se consigo mesmas e passam ao abuso de seus poderes, mas sempre pressupondo a ignorância dos outros. No Brasil, temos uma hemorragia de lideranças carismáticas no momento. Sinal de pobreza, não só econômico-financeira, mas mental e cultural."
Mota não está simplesmente engrossando o coro dos descontentes com a política brasileira. Ele acredita que há uma nação nova surgindo em salas de aula, em laboratórios, em congressos de profissionais e até mesmo entre o empresariado. "O Brasil, seus partidos, sua cultura política ficaram velhos e ninguém aguenta mais essa República corrupta, rançosa, datada. Por isso, vem despontando uma nova sociedade civil, que não engole tudo o que está aí. E os jovens estão buscando novas utopias, pois o populismo liquidou com as antigas utopias."
O populismo a que Mota se refere não é um fenômeno exclusivo do Brasil. Na América Latina, o populismo se caracteriza, segundo Francisco Weffort - autor do clássico "O Populismo na Política Brasileira" - , como um fenômeno que começa nos anos 1930, com a urbanização, e se aprofunda nos anos 1940/1950, com a transição entre uma sociedade rural e patriarcal para uma sociedade urbana e de massas. Também define o populismo um tipo de política praticada por líderes que são dissidência do sistema tradicional. Para Weffort, o presidente Getúlio Vargas encarna o símbolo máximo de político populista na história brasileira justamente por ter governado no período marcado por aquela transição e por ter se tornado um líder de massas tendo como origem a velha oligarquia rural do Rio Grande do Sul.
O tipo de líder do qual Getúlio é o principal exemplo se apresenta como benfeitor desse eleitorado pobre emergente que está sendo incorporado como massa nas grandes cidades (não por outra razão ele era chamado de "pai dos pobres") e tem grande capacidade de intervir na economia. Weffort lembra que Getúlio criou a Petrobras, a Vale do Rio Doce e toda a siderurgia nacional no rastro da crise do Estado liberal, instituindo o modelo de um Estado intervencionista.
Na sequência e seguindo a mesma linha, Juscelino Kubitschek criou a indústria automobilística. Hoje, com a economia concentrada no setor financeiro, um presidente não tem a mesma capacidade de intervenção. "O máximo que o Lula conseguiu fazer para intervir na indústria foi reduzir o IPI", entende Weffort.
Cada um a seu modo, Renato Lessa, Jairo Nicolau e Ângela de Castro Gomes são críticos do uso do termo populismo para pensar ou explicar o que acontece na política brasileira. Lessa lembra que, como tudo que inspira presença das massas populares, a palavra populista é uma designação acusatória. "É uma ideia imprecisa, que aponta para patologias políticas."
Embora o termo faça parte do vocabulário político de uso comum, Ângela questiona sua validade. "A palavra ganhou um sentido negativo e acusatório, e sempre é usada com a intenção de dar a entender que o político está fazendo falsas promessas ou tentando enganar o eleitor" - supostamente incapaz, por sua vez, de distinguir o bom do mau político.
Jairo Nicolau segue a mesma linha de Ângela e lembra que, no senso comum, a palavra populismo é quase uma peça de acusação. "O termo está contaminado, não ajuda muito a pensar sobre a política brasileira."
Carlos Guilherme Mota identifica em Pedro II o primeiro líder carismático, e também o nome inaugural de uma linhagem de populistas que passaria por Luiz Carlos Prestes, teria seu auge em Getúlio - "um Maquiavel de bombachas que driblou direitas e esquerdas" -, incluiria Leonel Brizola e desaguaria em Lula. "Ao contrário de Brizola, Lula conseguiu mobilizar o proletariado mais moderno do ABC, mas se perdeu na conciliação com as elites mais retrógradas."
No Brasil dos últimos 16 anos, a receita para agradar à massa tem sido mais ou menos a mesma, afirma Lessa, apontando para as semelhanças entre o governo de Fernando Henrique Cardoso e o de Lula, ambos apoiados em políticas sociais, economia de mercado, crescimento econômico e fortalecimento democrático. "Há uma convergência para o centro." Para Lessa, uma das diferenças estaria no fato de que, embora FHC não seja totalmente desprovido de carisma, Lula opera no vazio institucional de um parlamento desgastado e num vácuo de poder que é preenchido pelo presidente.
"No Brasil, quando a economia vai bem, o líder vai bem. O presidente tem poderes imperiais porque o governo federal é a maior reserva de recursos públicos do país", calcula Weffort. A concentração de recursos que dependem da caneta do presidente da República e a convergência para o centro explicariam, por exemplo, a importância do PMDB na sucessão presidencial.
Os pesquisadores Cesar Romero, Dora Rodrigues Hees, Violette Brustlein e Philippe Waniez trabalham com a análise histórica e geográfica dos dados eleitorais para mostrar que, desde a vitória de Fernando Collor, em 1989, vence a eleição presidencial o candidato que consegue reunir três requisitos: fechar alianças partidárias nos grotões, municípios de até 100 mil habitantes nos quais estão concentrados 40% do eleitorado; conquistar o voto dos eleitores evangélicos, majoritários nas periferias metropolitanas onde a Igreja Católica tem perdido fiéis desde a década de 1980; e atrair, por estratégias de marketing bem-sucedidas, os votos da classe média urbana, escolarizada, residente nos grandes centros, onde a tendência é a do voto de opinião. E se houver carisma, claro, provavelmente tudo ficará mais fácil.


Entrevista: O primeiro compromisso esquerdista deve ser com a democracia e o segundo, com o combate à corrupção. Só depois vem a crítica ao capitalismo, defende o filósofo Ruy Fausto.
A força do carismaPor Diego Viana, para o Valor, de Paris
15/01/2010
Karime Xavier/Folha Imagem
Ruy Fausto, professor da USP e da Universidade Paris 8, lança a revista eletrônica "Fevereiro", em homenagem às revoluções de 1848 e à primeira revolução russa de 1917
Aos 75 anos, o filósofo Ruy Fausto lamenta não ter tempo para realizar seus projetos. O autor de "Marx: Lógica e Política" (Editora 34) e "Dialética Marxista, Dialética Hegeliana" (Paz e Terra) luta por uma refundação do pensamento de esquerda. O primeiro compromisso da esquerda deve ser com a democracia e o segundo, com o combate à corrupção. Só depois vem a crítica ao capitalismo, defende. Neste tempo em que tanto o comunismo quanto o neoliberalismo entraram em crise, o tempo é de balanço.
Para promover suas ideias de uma nova esquerda, Ruy Fausto prepara o lançamento de uma revista eletrônica. O nome será "Fevereiro", em homenagem às revoluções de 1848, à primeira revolução russa de 1917 e ao levante de Kronstadt (1921), quando marinheiros e operários foram massacrados pelos bolcheviques. "É claro que é uma provocação", afirma. "Já que tem tanta Outubro por aí, esta é 'Fevereiro'."
Divulgação
"A partir de Marx, pôde-se ter a ideia de que o humanismo pode cair no seu contrário (num mundo de violência, propor a não violência implica violência), mas que o anti-humanismo não é solução"
Nascido em São Paulo e irmão do historiador Boris Fausto, o filósofo foi militante trotskista na juventude, antes de se exilar em Paris, em 1968. Na França, terminou sua tese e lecionou na Universidade Paris 8. Professor emérito da USP, Fausto se entusiasma com o crescimento dos partidos verdes na Europa e prevê catástrofes ecológicas que obrigarão a humanidade a repensar o capitalismo. "Estou na posição cômoda de quem não vai viver para ver isso, mas vocês, jovens, terão de enfrentar o problema."
Ex-petista desde o escândalo do mensalão, Fausto avalia que, em matéria econômica, a era Lula manteve-se na ortodoxia, mas ao mesmo tempo o presidente da República tomou medidas favoráveis aos mais pobres. "Seu mérito é jamais ter ameaçado a democracia", comenta. A seguir, os principais trechos da entrevista concedida em Paris.
Valor: O senhor rompeu como PT logo no começo da crise do mensalão. Hoje, que a "era Lula" está acabando, como avalia o período, do ponto de vista da história?
WireImage
O filósofo esloveno Slavoj Zizek, que, ao lado de Alain Badiou, é criticado por Ruy Fausto por seu anti-humanismo
Ruy Fausto: É importante que se tenha eleito para a Presidência um líder sindical com a história de Lula. Ele fez um governo curioso: em matéria econômica manteve-se na ortodoxia, mas ao mesmo tempo tomou medidas favoráveis aos mais pobres. Seu mérito é jamais ter ameaçado a democracia. É nessa base que se assenta seu prestígio no exterior. Acho que se fizeram coisas positivas no governo Lula. Creio que houve avanços em matéria de educação, e o Bolsa Família, mesmo se é uma medida emergencial, dá algum respiro à população mais pobre. A economia avança, mas os problemas continuam sendo enormes: violência, caos urbano, desigualdade. Importante é que se impõe a ideia de que devemos resolver o problema do conjunto da população. Sob o governo anterior, dizia-se que "a situação econômica" permitia resolver o problema de uma parte da camada mais pobre, mas as outras... Isso acabou. A exigência de justiça social, pelo menos como ideia, se impõe. Mas o PT acabou mergulhando no pior da política brasileira. E houve até o risco de ter um José Dirceu na Presidência.
Valor: A decepção é com o PT?
Fausto: Ainda penso que o PT tem interesse. Lá existe gente boa e também, digamos, algumas figuras razoáveis, com gente muito, muito ruim. Aprecio o Fernando Haddad [ministro da Educação], que faz um trabalho sério, nos limites do possível. E se um dia conseguíssemos lançar alguém como ele como candidato à Presidência, a partir de um movimento de base não comprometido demais com o PT? Não se subestimem essas jogadas históricas: seja qual for o futuro de seu governo, o caso Obama mostra como o improvável pode se efetuar.
Valor: Afinal, qual é o balanço dessa esquerda no poder?
Fausto: No início, a prudência de tipo ortodoxo era necessária, mas eles poderiam ter avançado depois. E não me agrada a política externa. Não é possível fazer o elogio do escândalo sangrento em que culminaram as eleições iranianas. O governo Lula professa, apesar de tudo, um terceiro-mundismo rançoso, como se vê por sua atitude em relação a Fidel Castro e Hugo Chávez. É hora de acabar com isso, o que não significa, muito pelo contrário, deixar de criticar o capitalismo. Já o problema da corrupção foi esvaziado com o argumento banal da crítica do "moralismo". Numa certa esquerda, como a solução é o comunismo triunfante, a corrupção aparece como epifenômeno do capitalismo. Mas quando cai a ideia do comunismo, a luta contra a corrupção aparece como um objetivo que, para usar a velha linguagem, se tornou estratégico. É tão essencial quanto a democracia. E vamos cutucar o capitalismo, pensar em como enfrentá-lo. É questão de invenção, o que é ótimo. Superar ideias antigas é, em primeiro lugar, um projeto intelectual, mas também é política.
Valor: Depois de 1989, a esquerda ficou abalada; depois de 2008, quem se abalou foi a direita. Há uma esquerda pronta para responder às questões de hoje?
Fausto: A derrota de 1989 não foi da esquerda, mas do chamado "comunismo". Para entender isso, é preciso refazer a história do bolchevismo. O que caiu - embora tivesse mudado, em alguma medida - era trabalho escravo, genocídio, despotismo. Outubro de 1917 foi algo muito duvidoso. Em três meses, todos, até os operários, estavam contra os bolcheviques. Por três anos, houve massacres, greves, revoltas, até que veio o levante de Kronstadt. A explicação pelas "condições" não explica quase nada. Com a queda do bolchevismo, a esquerda se livrou de uma hipoteca insustentável. Fala-se da perda de "conquistas". Não houve conquistas; houve alguns avanços, mas fragilizados pelo quadro totalitário e pagos ao preço de regressões históricas enormes, que redundaram num déficit histórico global imenso.
Valor: A esquerda está numa boa posição para dar as respostas?
Fausto: As dificuldades são grandes, principalmente em termos de meios. Mas os fins não são obscuros e utópicos como eram, digamos, há 40 anos. A primeira coisa a saber é que um projeto de sociedade é preciso. Antigamente, supunha-se que não era nem se devia formulá-lo, sob pena de utopismo: a "história" se encarregava, e já teria se encarregado, disso. Hoje, sabemos que a "história" não se encarrega de nada, em geral, e quando se "encarrega" pode vir o pior. Em matéria de projetos, não há mil alternativas. Sim aos direitos democráticos, ao Estado, ao direito e também à propriedade privada. Resta o problema mais difícil: o capitalismo. É preciso distinguir - Karl Marx [1818-1883] o fazia, mas de outro jeito - o capitalismo, de um lado, e a existência de mercadoria e dinheiro, de outro. É muito problemático, como ser e como dever ser, propor o fim da mercadoria e do dinheiro. Mas ao mesmo tempo é duvidoso que o capitalismo, busca frenética do lucro, subsista eternamente.
Valor: O que o senhor propõe concretamente?
Fausto: Queremos uma sociedade democrática, muito democrática. Quanta escória antidemocrática subsiste nas sociedades ocidentais! Depois, uma sociedade muito igualitária, mas não absolutamente igualitária. Terceiro, uma sociedade em que, havendo mercadoria e dinheiro, o capital seja freado de algum modo. Para isso, existem alguns meios: imposto de renda realmente diferenciado, desenvolvimento de cooperativas, ação do Estado nos setores fundamentais. Além do que se pode fazer no plano internacional. É preciso tirar da cabeça a ideia nefasta de que um projeto político de esquerda, nos seus objetivos finais pelo menos, vá fazer descer o céu sobre a Terra. Quem quer fazê-lo acaba descendo ao inferno. O Hegel [1770-1831] maduro tem razão, a seu modo, quando deixa de pôr o absoluto na cidade. Também Platão, quando passa da República às Leis. Quem quer o infinito, ou procura absolutos, que pesquise por outros lados que não os da política: por exemplo, na arte ou no amor. Mas há ainda dois problemas: um é o Terceiro Mundo, com sua carga de miséria e também, às vezes, de fanatismo fundamentalista. O outro são as questões ecológicas. Nisso, vejo uma dupla ameaça: crônica, de certo modo, com o uso multiplicado das energias fósseis; e aguda, com a possibilidade de uma catástrofe nuclear. Mas como intervir no mundo atual? E aí aparecem outras questões: a emergência da China, por exemplo. Pouca gente na esquerda e na direita se preocupa suficientemente com o fato de que a possível futura maior economia do mundo seja um país semitotalitário. Mas a primeira coisa para enfrentar esses desafios, condição necessária ainda que insuficiente, é repensar os fundamentos da política da esquerda.
Valor: Há um vazio no pensamento da esquerda?
Fausto: De certo modo. Mas não vejo aí motivo de desespero. O pensamento universitário é, em geral, impotente para enfrentar esses desafios. E é também impotente o pensamento daqueles que professam um revolucionarismo de outro tempo, como se o século XX fosse um parêntese a ser eliminado. Isso é comum entre economistas, filósofos e cientistas políticos de extrema esquerda. Eu os convidaria a abrir o livro do século XX e não nas páginas em que se fala do capitalismo (democrático ou autoritário), mas nas que falam do seu outro. Há quase cem anos de literatura histórica e crítica a respeito. Quanto aos autores que, num plano mais geral, poderiam nos servir como ponto de partida, citaria o [Theodor] Adorno [1903-1969] da "Dialética Negativa", [Cornelius] Castoriadis [1903-1997] certamente e também Claude Lefort.
Valor: Por onde passa a renovação do pensamento de esquerda?
Fausto: Primeiro, por um banho de história. É impossível fazer qualquer coisa enquanto a maioria acreditar na versão leninista da história do século XX, um pouco menos ruim do que a stalinista, mas hoje muito mais nefasta, já que na mitologia stalinista quase ninguém mais acredita. A segunda coisa é a crítica do anti-humanismo renascente, crítica que tem de ser feita fora dos quadros do humanismo. A terceira é uma teoria crítica das formas políticas. A universidade, em ampla medida, passa ao largo desse programa, principalmente no Brasil.
Valor: O senhor critica o anti-humanismo dos filósofos Alain Badiou e Slavoj Zizek. Mas o humanismo clássico foi apontado como responsável pelas atrocidades do século XX. O que podemos contrapor ao anti-humanismo hoje?
Fausto: O primeiro problema é definir o humanismo: ele aparece como recusa da violência e como filosofia dos direitos do homem. A partir de Marx (não sou marxista), se pôde ter a ideia, que vem, em última instância, de Hegel, de que o humanismo pode cair no seu contrário (num mundo de violência, propor a não violência implica violência), mas que o anti-humanismo não é solução. O humanismo fundamenta a ética (o que, apesar das aparências, tem suas dificuldades); o anti-humanismo elimina todo fundamento, o que é ainda mais problemático. Mas é preciso ir além. As dificuldades do esquema clássico são duas. Primeiro, é preciso repensar as relações entre meios e fins à luz da história contemporânea. Depois, é preciso repensar a definição do homem. A visão clássica era idílica demais e já não serve, mas a definição anti-humanista do homem serve ainda menos.
Valor: E quanto ao humanismo como dominação?
Fausto: Isso é fruto de uma identificação entre humanismo de um lado, e visão prometeica-cartesiana de outro. Com isso, é fácil passar da dominação da natureza à dominação do homem, daí o humanismo ser responsabilizado pelos horrores do século XX. Essa tese, muito difundida, que às vezes põe no banco dos réus até o kantismo, é falsa. Houve duas filosofias expressamente humanistas na história: a de [Ludwig] Feuerbach [1804-1872] e a do jovem Marx (o velho Marx é outra coisa). Neles, não há prometeísmo nem dominação da natureza, mas um discurso humanista e também naturalista, muito marcado por Schiller. Anuncia, à sua maneira, o discurso ecologista. Para além do problema histórico, é fácil perceber que os totalitarismos são ao mesmo tempo prometeicos e anti-humanistas. Infelizmente, não posso desenvolver muito, aqui, este tema.
Valor: O iluminismo, então, não é humanista?
Fausto: Há muita coisa por trás da ideia de "iluminismo" que precisa ser desconstruída. São ao menos três elementos: razão, progresso e direitos do homem. Esses três elementos não funcionam (e não funcionaram, historicamente) do mesmo modo.
Valor: Como podemos conceber o homem?
Fausto: É preciso pensá-lo como repositório de possíveis. Uma "antropologia dialética", como diziam os frankfurtianos (tão mal utilizados hoje, especialmente no Brasil). Nem o humanismo nem o anti-humanismo, nem mesmo a recusa dos dois nos termos da dialética clássica, nos levam a um bom resultado.



domingo, 24 de janeiro de 2010, 01:21 0 comentário(s)
Os descamisados de LulaDiscurso lulista conquistou os mais pobres ao aliar defesa da ordem com distribuição de renda
Ivan Marsiglia - O Estado de S.Paulo
Às vésperas da eleição que colocará à prova o legado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, um artigo publicado na última edição da revista Novos Estudos, do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), reverberou nos meios acadêmicos. Assinado pelo cientista político André Vitor Singer, de 51 anos, Raízes Sociais e Ideológicas do Lulismo sustenta a tese de que, a partir da reeleição de 2006, o subproletariado, uma camada que sempre se manteve distante de Lula, aderiu a seu projeto político - provocando um realinhamento eleitoral no País.
Ex-porta-voz e secretário de Imprensa de Lula de 2003 a 2007, André toma o termo subproletariado emprestado do pai, o economista Paul Singer, ainda secretário nacional de Economia Solidária do Ministério do Trabalho. Composta por eleitores de baixíssima renda (até 2 salários mínimos de renda familiar), a nova base política de Lula é, paradoxalmente, a mesma dos "descamisados" de Fernando Collor em 1989. Diretamente beneficiada pelos programas sociais do governo, combina elementos ideológicos de esquerda e de direita.
Nesta entrevista, Singer descreve o novo fenômeno, diz em que medida o lulismo se confunde com o populismo das décadas de 50 e 60 e especula sobre quem herdará o legado do atual presidente.
O SUBPROLETARIADO
"O professor Paul Singer, na década de 80, fez um trabalho analisando os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), na qual detectou a existência de uma camada que chamou de subproletariado: os trabalhadores que não conseguem atingir no mercado uma remuneração que lhes dê condições mínimas de participação na luta de classes. E eles eram quase metade da força de trabalho do País. Dos anos 80 para cá, as condições de vida dessa camada permaneceram intactas. Houve um momento de piora até meados dos anos 90, com a implementação de políticas neoliberais no Brasil. Depois, uma certa melhora, após o Plano Real. No cômputo final, ficou como estava - até o governo Lula.
CARÁTER AMBÍGUO
"O subproletariado é conservador e progressista ao mesmo tempo. Não aposta em conflitos sociais que ameacem a ordem, mas se mostra fortemente favorável a ações do Estado para a distribuição da renda. Tem as características que Karl Marx apontou em relação aos camponeses franceses n"O 18 Brumário de Luís Bonaparte. Como estão isolados e não conseguem se organizar enquanto classe, projetam sua aspiração em alguém que está no alto - no caso, Luís Bonaparte. No Brasil, na eleição de 1989, a identificação dos eleitores de baixíssima renda foi com Collor. Em, 2006, com Lula.
ENTRE RICOS E POBRES
"Os números da eleição de 2006 mostraram claramente uma polarização entre ricos e pobres. No segundo turno, o presidente tem 64% das intenções de voto entre os que têm renda familiar mensal de até 2 salários mínimos. O governador Geraldo Alckmin, 25%. No extremo oposto, dos eleitores que recebem acima de 10 salários mínimos, Alckmin tinha 54% de votos contra 36% de Lula. Houve forte polarização por renda, como não ocorria desde 1989, quando os mais pobres preferiram Collor.
A VOLTA DOS DESCAMISADOS
"Às vésperas da eleição de 1989, Lula ganhava em todas as faixas de renda, menos a mais baixa. Isso sinalizava um fenômeno sociopolítico curioso: a faceta conservadora dos eleitores de baixíssima renda. Podia-se identificar nas pesquisas uma coerência entre o voto em Collor e as respostas que esses eleitores davam em relação à questão das greves que afligiam o País naquela ocasião. Quanto menor era a renda, mais apoio ao uso de tropas para acabar com as greves. A razão sociológica para isso é o fato de que eles estão excluídos de qualquer organização, dos mecanismos de luta para os quais faz sentido o conflito político. Para um trabalhador que vive boa parte do tempo desempregado ou na informalidade, a desordem parece ser sempre prejudicial.
AUTOCRÍTICA
"Depois da eleição de 89, Lula concedeu uma entrevista em que identifica claramente as razões da derrota: "A verdade nua e crua é que quem nos derrotou, além dos meios de comunicação, foram os setores menos esclarecidos e mais desfavorecidos da sociedade. Nós temos amplos setores da classe média com a gente - uma parcela muito grande do funcionalismo público, dos intelectuais, dos estudantes, do pessoal organizado em sindicatos, do chamado setor médio da classe trabalhadora". Depois de quase 20 anos, houve uma virada, o que chamo de realinhamento eleitoral de 2006: o subproletariado aderiu em bloco a Lula.
HEGEMONIA ÀS AVESSAS?
"Na visão do professor Francisco de Oliveira, foi concedido a Lula um mandato para a execução de reformas que não ocorreram - no que ele chama de "hegemonia às avessas". Em minha opinião, foi cumprida, sim, uma agenda reformista. Ao mesmo tempo, porém, adotaram-se condutas de manutenção da ordem que fazem parte da composição ideológica do subproletariado. Entre elas, a manutenção de uma alta taxa de juros, a elevação do superávit primário e a garantia de liberdade para o capital por meio do câmbio flutuante. Somados, programas como o Bolsa-Família, o aumento do salário mínimo, o crédito consignado, a redução do custo da cesta básica e o Luz para Todos produziram uma mudança perceptível nas condições de vida.
NEOPOPULISMO?
"A história pessoal de Lula lhe confere uma legitimidade jamais sonhada pelos "estancieiros gaúchos": Getúlio Vargas, João Goulart e Leonel Brizola. Porque, diferentemente deles, Lula é uma pessoa que se originou desse extrato social. É por isso que, no final do artigo, digo que o debate sobre o populismo estará de volta. Em uma das passagens mais bonitas do 18 Brumário, Marx diz que os atores das situações políticas novas precisam usar a gramática antiga para falar delas. E a gramática que se busca para explicar o lulismo no Brasil hoje é a da simbologia do populismo dos anos 50. Entretanto, políticas de Vargas como a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) visavam aos trabalhadores com contrato e deixavam à margem todo o setor rural. O que está acontecendo agora é o inverso, porque a camada beneficiada é justamente a que sempre ficou de fora. Por isso, o lulismo é um fenômeno novo, que tem que ser definido com cuidado.
PT PÓS-LULA
"Está dada uma espécie de janela de oportunidade. O PT desenvolveu, ao longo dos anos, uma base sólida nos setores organizados da classe trabalhadora. Agora, existe a possibilidade de incorporar esse setor que está se expressando por meio do lulismo. Pode ser que a fusão dessas duas bases sociais já esteja ocorrendo - e se expressou nas eleições de 2008, quando o PT não foi bem nas capitais, mas venceu na extrema periferia e no entorno delas. Ainda é cedo para dizer quem serão os depositários da herança política lulista.
DISPUTA APERTADA
"Fazendo a ressalva de que previsões eleitorais falham tanto quanto as meteorológicas, eu diria que a tendência é de vitória da candidata do governo. Se o lulismo tiver as características que estou imaginando, não haverá dificuldade para transferência de votos. Pois ele não é uma adesão pessoal ao Lula e a seu carisma, mas ao programa político que ele representa. A dianteira do governador José Serra se deve ao fato de que as pesquisas até aproximadamente junho expressam mais o conhecimento do candidato do que a opção por ele. E a informação política demora mais a chegar aos eleitores menos instruídos, que compõem a base de Lula. Se a vitória de Dilma se confirmar, provavelmente será por uma margem menor do que as de Lula em 2002 e 2006. Vai ser uma eleição apertada."



Reportagem de Capa: A virada na geopolítica global, com maior peso dos países emergentes, tem levado o Brasil a lutar não só por cargos de direção em organismos internacionais como por postos técnicos estratégicos. Para as instituições, é bom ter mais funcionários brasileiros para melhor entender o país e fazer suas políticas mais bem compreendidas.
Brasileiros sem fronteirasPor Assis Moreira, de Genebra05/02/2010
Foi por meio de tragédias que o Brasil começou a prestar atenção nos "internacionais", categoria profissional em expansão entre os brasileiros. Os "internacionais" são os altos funcionários de organismos multilaterais em Genebra, Nova York ou em conflitos ao redor do mundo. Na prática, atuam como diplomatas, não representando o país, mas a comunidade de nações. Os refletores sobre essa categoria foram focados a partir da morte trágica, em 2003, do representante especial da Organização das Nações Unidas (ONU) no Iraque. Era Sérgio Vieira de Mello, pouco conhecido até então no Brasil. Na verdade, Vieira de Mello já era referência na burocracia internacional. Sua carreira na ONU o levou à busca da paz em conflitos nos quatro cantos do mundo, do Paquistão ao Timor Leste, dos Bálcãs ao Peru. Passou mais tempo em ação do que em confortáveis gabinetes em Nova York e Genebra.
No mês passado, no terremoto no Haiti, uma das vítimas foi o vice-representante da ONU, Luiz Carlos de Souza. Era o brasileiro com mais alto posto na burocracia do organismo global, onde tinha entrado como jovem mensageiro (distribuidor de correio).
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Lucas Assunção, diretor de Comércio, Mudança Climática e Meio Ambiente da Unctad
Hoje, são poucos os altos funcionários internacionais de origem brasileira, mas todos têm qualidade indiscutível. Entre eles, estão Victor do Prado, na Organização Mundial do Comércio (OMC); Murilo Portugal, no Fundo Monetário Internacional (FMI); Eliana Cardoso, economista-chefe do Banco Mundial para o Sul da Ásia; Lucas Assunção, na Agência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad); Denise Coitinho, na Organização Mundial da Saúde (OMS); Fábio Leite, na União Internacional de Telecomunicações (UIT), José Graça Aranha, na Organização Mundial de Propriedade Intelectual (Ompi); Luiz Mello, na Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE); Alexandre Addor, na Organização dos Estados Americanos (OEA), e Elisa Berenguer, na Secretaria Geral Ibero-americana.
Apesar do protagonismo da diplomacia brasileira, o país não teve uma política de estímulo à contratação de brasileiros na burocracia multilateral, ao contrário de Alemanha, Canadá, Austrália e, agora, a China. Sem surpresa, as instituições internacionais têm sido dominadas por funcionários de países ricos, os maiores contribuintes financeiros. Isso os levou a agir quase como proprietários das entidades, o que se refletia nas regras e políticas impostas ao resto do mundo.
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Victor do Prado, subchefe de gabiente do diretor-geral da OMC, Pascal Lamy
Mas os brasileiros não são uma espécie em extinção e, sim, em expansão na burocracia multilateral. A virada na geopolítica global, com maior peso dos emergentes, leva Brasília a lutar não só por cargos de direção, que passam por eleição entre os países, como também por postos técnicos estratégicos. Para as próprias organizações, é bom ter mais brasileiros tanto para melhor entender o país quanto para fazer suas políticas mais bem explicadas e compreendidas no Brasil.
No geral, os brasileiros em altos cargos têm sólida formação acadêmica, em boa parte completada no exterior. Têm facilidades de comunicação, o que vai além de dominar idiomas. Em razão da mistura brasileira de Bélgica e Índia (conforme a comparação do economista Edmar Bacha na década de 70), eles transitam facilmente entre o mundo desenvolvido e o em desenvolvimento, sendo capazes de entender tanto o ponto de vista dos EUA quanto dos africanos, por exemplo.
Ser funcionário internacional assegura uma confortável vida de classe média. Não pagam impostos, e a escola ou a universidade dos filhos é bancada em 70% pelos organismos internacionais em qualquer lugar do mundo. Quem tem cargo equivalente a vice-diretor pode embolsar cerca de US$ 150 mil líquidos por ano. Em cargos médios a situação é diferente: uma "internacional" brasileira na OIT diz que metade do salário de US$ 8 mil mensal é para pagar aluguel.
Normalmente, os brasileiros dizem que a motivação maior é a experiência internacional e estar no centro das decisões globais em certos momentos. Ou seja, não se focar só na estratégia nacional, mas numa visão global. "Vejo a governança global de perto", diz Victor do Prado, um dos que têm estado no "olho do furacão", como subchefe de gabinete do diretor-geral da OMC, Pascal Lamy. Diplomata de carreira, foi assessor econômico do ex-ministro Luiz Felipe Lampreia, no Itamaraty, por quatro anos. Em 2002, servia na embaixada em Berlim quando decidiu candidatar-se a uma vaga na Divisão de Regras da OMC. Foi aprovado e tornou-se um dos maiores especialistas em antidumping e subsídios.
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Denise Coitinho, funcionária da OMS
Quando foi eleito, em 2005, Lamy pediu ao serviço de pessoal da OMC uma lista de funcionários com experiência em gabinete ministerial. Prado estava entre eles. O diretor-geral fez duas entrevistas com ele. Perguntou sobre seu antigo trabalho no ministério, para quantos embaixadores em Genebra tinha liberdade para telefonar e até sobre seu tempo livre. Recomendações de Lampreia e do embaixador José Alfredo Graça Lima ajudaram.
"Quando formei meu gabinete e recrutei os vice-diretores, queria uma equipe com diversidade geográfica, qualidades humanas, experiência técnica, atitudes politicas", conta Lamy. "Entre os candidatos que entrevistei, Victor se impôs como o número 2 do gabinete por esses critérios." Lamy elogia os diplomatas brasileiros "particularmente bem formados pelo Itamaraty, que tem longa tradição e referências numerosas e reconhecidas".
Mas passar de diplomata, representando um país, para funcionário internacional a serviço das nações-membro gera outro perfil. "Como negociador do Brasil, você sabe quais são suas cartas e não conhece as cartas dos outros. Trabalhando na OMC, conheço normalmente as cartas de todo mundo. Só que não posso participar do jogo", comenta Prado. Mas ele pode "assoprar para algum parceiro jogar" e impulsionar uma negociação comercial em determinado momento. Indagado sobre até que ponto seu papel como funcionário ajudaria o Brasil, ele não hesitou: "Sou imparcial o quanto possível, e quando possível. Sou sempre brasileiro".
Um dos momentos fortes que Prado testemunhou foi a reunião decisiva de ministros em julho de 2008, na última tentativa séria para concluir Doha, ocorrida em Genebra. Depois de quatro dias de prolongadas negociações, às 3h da manhã e todo mundo sem dormir e cansado, ficou claro quem era profissional de negociação. A americana Susan Schwab parecia descontrolada, já que não tinha margem para negociar e era cobrada a ceder. O indiano Kamal Nath se limitava a fazer jogo elétrico no celular. O europeu Peter Mandelson olhava o teto e tentava testar a paciência de Lamy. O brasileiro Celso Amorim, que tinha saído para descansar, soube administrar melhor o estresse na mesa de negociação. "Quem tem condicionamento físico se sai melhor, ainda mais se a negociação durar muito", avalia Prado, que, como Lamy, participa de corridas.
Seu gabinete é colado ao de Lamy. De vez em quando, um visitante é surpreendido com o diretor-geral entrando pela porta interna. Falando quatro línguas - inglês, francês, alemão e espanhol-, Prado organiza desde reuniões, contata ministros, reflete estratégias, escreve discursos, é ponto de contato com a América Latina e resolve muitos problemas.
Financeiramente, Prado avalia que receberia mais caso tivesse continuado a carreira no Itamaraty, considerando o auge profissional como embaixador. "Mas o importante é se o trabalho é interessante. Não importa onde."
Na Unctad, a 500 metros da OMC, o economista Lucas Assunção acaba de assumir a diretoria de Comércio, Mudança Climática e Meio Ambiente. É o latino-americano com posto mais alto na entidade, após disputa com dois alemães. Como ocorre quando os cargos já são de diretoria, a influência política também pesa com a competência individual. O ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, teve que intervir e telefonar ao diretor-geral, Supachai Panitchpakdi, para obter o posto, segundo uma fonte do Itamaraty.
Formado na PUC-Rio e em Berkeley (EUA), sua trajetória na burocracia internacional começou no Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), em Brasília. Depois conseguiu um contrato em Nova York. Em 1990, tornou-se assistente-executivo do secretário da Conferência Rio-92, Maurice Strong. "Na Rio-92 o Brasil mostrou que não precisava ficar acuado na questão ambiental", diz Assunção. Na preparação do encontro de cúpula, acompanhou episódios inusitados, como o credenciamento, às pressas, do então senador democrata Al Gore como integrante de uma ONG - ele não conseguira ser incluído na delegação americana do governo de George Bush (o pai). Em 2007, Al Gore ganhou o Nobel da Paz por seu engajamento na área ambiental.
Assunção também presenciou um estrago causado pela ciumeira entre altos funcionários. O então recém-empossado secretário-geral da ONU, o egípcio Boutros Boutros-Ghali, irritado com o prestígio de Strong, bloqueou uma demanda do Japão para seu primeiro-ministro fazer uma intervenção por vídeo, já que estava retido em Tóquio por causa de reunião no Parlamento. "Foi por causa dessa briga que a Agenda 21 recebeu ajuda minguada dos japoneses." Os japoneses tinham prometido US$ 5 bilhões para a Agenda 21, o programa da ONU para meio ambiente e desenvolvimento. Frustrados com a falta de visibilidade para seu chefe de governo, Tóquio cortou sua colaboração e o programa global começou com apenas US$ 1,5 bilhão de todos os países.
Assunção se diz satisfeito com a experiência internacional, mas admite frustração: "Na minha geração, o Brasil nunca esteve tão bem como agora, e lamento não estar participando mais diretamente lá". E conclui, quase rindo: "Pode dizer que estou procurando emprego no Brasil".
A presença de brasileiros nos quadros da OMS é um exemplo de como o Brasil se preparou para influenciar na política global do setor, conta Denise Coitinho, nutricionista formada em São Paulo e na Inglaterra, que trabalhou para a Unicef em Moçambique, foi professora da Universidade de Brasília (UnB), assessora do Ministério da Saúde e hoje está na OMS. Ela atribui ao ex-secretário de Saúde de São Paulo e mais tarde assessor do Ministério da Saúde, João Yunes, o mérito de ter preparado uma equipe para usar as brechas no sistema global e elevar a presença brasileira. Ele constatou que havia três grupos de países no sistema multilateral: os receptores de ajuda; os ricos doadores; e os países como o Brasil, que não precisavam de doação, tinham programas inovadores e podiam fazer a ligação entre os dois primeiros grupos.
"Nós, no ministério, olhávamos internamente e ficávamos frustrados, achando que fazíamos pouco. Mas quando começamos a olhar para o mundo, vimos que estávamos avançados e tínhamos o que ensinar", diz Denise. "Esse foi o 'turning point' do Brasil na área de saúde no campo internacional."
Programas brasileiros como o de tratamento de aids, merenda escolar e outros foram copiados. O resultado desse processo genuinamente brasileiro é que diferentes postos abertos no exterior foram ocupados por brasileiros qualificados da equipe de Yunes, todos passando por concurso internacional: Denise foi chefiar o Departamento de Nutrição da OMS. Paulo Teixeira foi comandar o programa mundial contra aids. Vera Costa e Silva chefiou o programa antitabaco. Jarbas Barbosa foi para a Organização Panamericana de Saúde dirigir a vigilância de epidemias. Jorge Bermudez chefia o Unitaid, programa lançado pelo Brasil e França para facilitar o acesso de populações de países pobres a remédios baratos contra aids, tuberculose e palidismo. "Todos viraram chefes, com capacidade de influência em políticas globais", diz. Teixeira e Vera voltaram para o Brasil por vontade própria.
A atual equipe do Ministério da Saúde segue a trilha aberta com o mesmo empenho. Denise acaba de retornar, após dois anos de missão em Roma, onde montou com outras organizações globais o programa Reach, de combate à desnutrição em países pobres.
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) também se inspirou em experiência brasileira, como o programa de erradicação do trabalho infantil. Um dos brasileiros que trabalham na entidade é Anita Amorim, filha de Celso Amorim. Formada em história na Unicamp e com mestrado em Paris, Anita começou na burocracia internacional aos 23 anos, na Unesco, com pequenos contratos. Foi para Nova York quando surgiu vaga na representação da Unesco. E passou a trabalhar na OIT em 2000. Coincidiu com a presença de Amorim como embaixador em Genebra, onde presidiu o Conselho de Administração da OIT.
Em visita a Genebra, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva chamou Anita de "madame Cartão Vermelho", em referência ao programa de combate ao trabalho infantil feito com a Federação Internacional de Futebol (Fifa). "Para entrar na OIT os testes são duríssimos", diz Pedro Américo Furtado de Oliveira, que começou na entidade em Brasília e hoje trabalha na sede em Genebra. "Ha poucos brasileiros como funcionários internacionais, mas o dinamismo deles é enorme no setor privado, trabalhando em multinacionais no exterior."
Atualmente, um brasileiro disputa o cargo de administrador do céu. Bom, é quase isso. Cada pedaço do céu está dividido em posições orbitais. Cada país tem seu espaço para posicionar satélites. O gestor disso tudo é o diretor de Radiodifusão, da UIT. Fábio Leite, engenheiro de comunicações que já é vice-diretor e começou na Telebrás, teve a candidatura lançada pelo Brasil. Um francês e um canadense também estão na disputa por esse cargo estratégico, do qual depende a indústria de "wireless" que pesa US$ 50 bilhões por ano.
"O Brasil já é o quinto maior usuário de celular, foi o primeiro a usar satélite doméstico", diz. "Sou funcionário internacional, mas ter este posto ajudará o Brasil, porque pode melhorar a compreensão sobre o tratado de satélites, por exemplo." Um erro em um só projeto de lançamento, na órbita errada e sendo recusado na UIT, pode causar prejuízo de US$ 300 milhões. Leite vê chances de ganhar ainda mais com a mobilização da diplomacia brasileira, que já começou.
Alguns "internacionais" começaram a carreira fora, mas foi um retorno temporário ao Brasil que lhes impulsionou na burocracia multilateral. José Graça Aranha era funcionário na Ompi, entidade que regulamenta a produção, distribuição e uso de tecnologia e do conhecimento no planeta até ser recrutado pelo governo Fernando Henrique para dirigir o Instituto Nacional de Propriedade Intelectual. Ao retornar à Ompi, obteve cargo melhor e acabou sendo candidato brasileiro ao posto de diretor. Perdeu por um voto para o candidato australiano. O país foi recompensado com a instalação, no Rio, do escritório regional para a América Latina. O diretor tem salário suíço e vive no Rio. "O duro é quando saio do Rio com 40 graus e desembarco em Genebra, com 9 graus negativos, para reunião", diz. "Minha mulher acha que ganho pouco."
A economista Edna dos Santos, da Unctad, é a brasileira mais antiga na cena multilateral em Genebra. Então funcionária da Vale, fazia mestrado em Paris quando foi visitar a Unctad. No mesmo dia recebeu convite para concorrer a uma vaga de economista no departamento de minérios, porque tinha o perfil exato de especialista originário de país em desenvolvimento. Está em Genebra há 28 anos e já visitou 80 países. Não esquece visita oficial a Roma acompanhando o então secretário-geral da Unctad, Rubens Ricupero. Todo mundo no carro oficial ficou de cabelo em pé vendo os batedores da polícia italiana abrindo caminho em Roma em velocidade de Fórmula-1.
Os "internacionais" também se casam, às vezes, entre eles. Edna conheceu o ex-marido, um holandês, durante reunião do Comitê de Aço. Ela representava a Unctad, ele, a OCDE. Ela vivia em Genebra, ele, em Paris. Edna é diretora do Programa de Economia Criativa, um dos mais promissores da Unctad, e seu namorado atual é um artista romeno.
"O Brasil, com certeza, precisa ter uma política mais ativa para apoiar os funcionários brasileiros", diz Edna. Hoje, de 40 mil pessoas com contrato de trabalho na ONU, apenas 157 são brasileiros, menos que Argentina (194), Chile (376), Egito (218), China (435) e Rússia (666).
O país está na disputa pela direção do orgão da ONU que se ocupa do combate às drogas e crimes, com sede em Viena. Pedro Abramovay, secretário de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, é candidato contra o atual ocupante do posto, o italiano Antonio Costa. Os dois se movimentam em busca de apoio, mas nao há eleição. A escolha será do secretário-geral, Ban Ki-moon, porque o escolhido vai também representá-lo na cena multilateral em Viena. Para Abramovay, ganhar o posto fará o Brasil, que sempre foi vidraça, passar a ser vitrine na área. "É o reconhecimento da política brasileira de segurança pública, de combate às drogas e à corrupção."
Até agora, o governo Lula perdeu todas as grandes disputas por direção de orgãos multilaterais: na OMC, no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), na UIT e na Ompi.
Outra categoria de "internacionais" é de diplomatas indicados pelo Brasil para ocupar postos informalmente reservados ao país, "algo que tende a ocorrer mais, como país grande e ativo na cena global. Na OEA, em Washington, o Brasil ocupa a Segurança Multidimensional, por meio do embaixador Alexandre Addor, que serviu em Moscou, Luanda, Chicago e Brasília. Fazem parte de sua secretaria áreas que cuidam de drogas, terrorismo e segurança pública. A visão da OEA é de que as chamadas novas ameaças à estabilidade e segurança estão nos campos econômico (pobreza extrema, desemprego, instabilidade financeira), social (exclusão e desesperança), político (falta de confiança nas instituições democráticas), de saúde pública (endemias, pandemias) e desastres naturais. Adder comanda as tentativas de cooperação regional.
Também nessa categoria está Maria Elisa Berenguer, secretária-adjunta da Secretaria Geral Ibero-americana (Segip), em Madri, organismo de apoio à Conferência Ibero-americana e à cúpula de chefes de Estado e de governo dos 22 países integrantes. Maria Elisa volta à diplomacia bilateral, como futura embaixadora brasileira em Israel. Mas não esconde o entusiasmo com o multilateralismo. "O Brasil está em alta na geopolítica global e há demanda crescente para ocupar um papel maior", diz ela. "O brasileiro se critica, mas nossa diversidade cultural ajuda barbaramente [a atuar na cena global]."
Mas os "internacionais", mesmo com o jogo de cintura tropical, enfrentam choques culturais. Leite, da UIT, viu uma amizade com o vizinho suíço ser envenenada por briga sobre uma cerca entre as duas residências, que acabou chegando à Justiça. Do ponto de vista pessoal, outra dificuldade é que as famílias ficam "mais voláteis". A filha de Leite saiu pequena do Brasil, tornou-se suíça, foi estudar no Canadá e resolveu ficar. "Para os filhos, é bom, mas para os pais é um desenraizamento."
Denise Coitinho complementa. Diz que "a rotação é parte do sistema, todos sabem que podem ser transferidos, estar hoje aqui e amanhã no outro lado do mundo". E funcionário internacional precisa estar sempre disponível para viajar a qualquer lugar do mundo com todos os riscos que isso traz, como mostram as tragédias com Vieira de Mello e Costa.



Carioca é o terceiro mais importante no FMIAlex Ribeiro, de Washington05/02/2010
Murilo Portugal: acompanhamento das relações de 80 países com o FMI, incluindo 18 economias na Europa, 21 na América Latina e no Caribe, 21 na África e 11 na Ásia e o restante na Oceania
Com uma longa carreira no governo brasileiro e em organismos multilaterais, o advogado e economista carioca Murilo Portugal tornou-se um especialista em dizer coisas pouco agradáveis para os políticos. Como secretário do Tesouro na efetivação do Plano Real, em 1994, dizia não aos pedidos de aumento de gastos públicos. Agora, no terceiro mais importante cargo no Fundo Monetário Internacional (FMI), sugere a presidentes e primeiros-ministros que apertem os cintos e façam dolorosas reformas econômicas.
Em fins de 1998, porém, quem estava em dificuldades era o Brasil, em meio à crise asiática e à moratória russa. Portugal, recém-apontado representante do Brasil no FMI, assumiu a ingrata missão de negociar um pacote de socorro de US$ 41,5 bilhões. "Foi uma negociação muito difícil. Eles queriam que o Brasil não desvalorizasse o real", lembra Portugal. "Conseguimos fechar o pacote, mas tivemos que desvalorizar."
Portugal, de 61 anos, subiu por mérito próprio, sem ajuda nenhuma do governo, à posição mais importante no FMI a que alguém vindo de um país emergente pode chegar. É o brasileiro com maior destaque num organismo multilateral. O cargo de diretor-geral, topo na hierarquia, é tradicionalmente reservado a um europeu e, hoje, está sendo ocupado pelo francês Dominique Strauss-Kahn. O segundo posto, diretor-gerente, fica sempre com os americanos, e hoje o seu titular é o banqueiro John Lipsky, do JP Morgan.
Portugal recebeu em 2006 um convite do então diretor-geral do FMI, o espanhol Rodrigo de Rato, para substituir o mexicano Agustin Carstens. A relação profissional de Portugal com Rato foi determinante. Entre 1998 e 2005, Portugal foi o representante brasileiro no FMI, e Rato o conheceu de perto.
Portugal acompanha as relações de 80 países com o FMI, incluindo 18 economias na Europa, 21 na América Latina e no Caribe, 21 na África e 11 na Ásia e o restante na Oceania. Nessa longa lista, está, por exemplo, a pequena, mas cheia de problemas, Islândia, talvez o país que mais sofreu nessa crise financeira internacional. Portugal passa pelo menos um terço de seu tempo viajando no exterior. Na sede do FMI, aprova os relatórios do chamado artigo 4º dos países que acompanha. Nesses documentos, os técnicos do organismos fazem um amplo diagnóstico de cada economia, propõem reformas e conclamam países a pôr contas fiscais em ordem e bancos centrais a prestar mais atenção nos juros baixos.
Advogado e economista formado pela Universidade Federal Fluminense e mestre pelas Universidades de Cambridge e Manchester, Portugal tem uma carreira de três décadas no governo, começando no Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea). Saiu do Tesouro em 1996 e mudou-se para Washington, onde se tornou representante brasileiro do Banco Mundial.
Com a crise asiática e russa, acumulou a representação brasileira no FMI. Tinha diante de si a tarefa nada fácil de substituir o economista Alexandre Kafka, então com 82 anos, respeitadíssimo dentro do organismo depois de mais de 30 anos de serviço. "Ele era uma legenda por aqui", diz sobre Kafka, que já morreu.
Portugal voltou para o Brasil em 2005 para tornar-se secretário-executivo do Ministério da Fazenda, na gestão de Antonio Palocci. A escolha não foi muito bem-vista pelos petistas mais radicais, que indentificavam Portugal com o Plano Real e o governo FHC. Quando Palocci caiu, em virtude do escândalo da quebra do sigilo bancário do caseiro Francenildo Santos Costa, deixou o cargo. Portugal até ensaiou ir para a iniciativa privada. "Tinha alguns convites", relata. "Mas aí o Rato me chamou. Minha carreira sempre foi no governo."




OPINIÃO
PT, o suplício de uma saudadeFRANCISCO DE OLIVEIRAESPECIAL PARA A FOLHA
AOS 30 ANOS de sua fundação, o PT realiza todas as previsões da ciência social sobre a estrutura e o funcionamento das grandes organizações. No caso dos partidos, foi Robert Michels quem traçou essa rota.
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OPINIÃO
PT, entre o passado e o futuroMARCO AURÉLIO GARCIAESPECIAL PARA FOLHA
ANIVERSÁRIOS sempre são ocasião para celebração. Sobretudo quando quem celebra é um partido político que há sete anos governa o Brasil e é responsável pela grande transformação econômica, social e política que mudou a cara do país e projetou-o no cenário internacional.
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Política: O PT chega às portas de nova eleição presidencial com uma história de 30 anos conturbada e de desfecho ainda incerto.
Era uma vez um partidoPor Cláudia Izique, para o Valor, de São Paulo05/02/2010
Lula nos tempos de assembleia em São Bernardo: o PT ocupou um "lugar de mercado" que poderia ter sido do PCB, analisa o cientista político Claudio Couto
O Partido dos Trabalhadores chega aos 30 anos com uma história que não se pode qualificar como de perfeita homogeneidade, nem programática, nem ideológica, nem de prática política. O que se vê é um percurso acidentado, marcado por dissensões e revisões de rumo que talvez, numa visão otimista, possam ser creditadas a um processo, natural em partidos políticos e outros ajuntamentos humanos, que faz do conflito um caminho para a integração e o fortalecimento.
Não é o que pensa o sociólogo Francisco Weffort. O fato de a candidata do partido, Dilma Rousseff, ser escolha do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e não refletir um consenso partidário inspira a análise pessimista de Weffort, que deixou o PT em 1987, candidato derrotado a deputado constituinte. "O PT está engolindo Dilma por não ter alternativas" e a eventual vitória da ministra-chefe da Casa Civil, avalia Weffort, deverá empurrar o partido para importante perda de substância. "O Lula é uma espécie de reserva de contingência das convicções que deram origem ao partido. Se ela se eleger, haverá um esvaziamento dessas convicções. Haverá um esvaziamento ideológico e programático ainda maior."
Cândido Vacarezza, líder do governo na Câmara, discorda: "O que fundamenta o PT é sua unidade política. A Dilma tem mais identidade com o nosso projeto do que outras pessoas que participaram da fundação do PT. Ela representa a materialização do projeto do partido para o futuro."
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Manifestantes comemoram o início do segundo mandato de Lula, em 2007
O que não se discute é a relevância do PT na vida política do país desde a fundação, em 10 de fevereiro de 1980, três meses depois da Lei da Anistia e da aprovação pelo Congresso da reforma partidária que restabeleceu o pluripartidarismo. No ocaso da ditadura, surgiu como um partido novo, diferente das agremiações tradicionais, que se organizavam em torno de elites políticas vinculadas ao Estado.
Gestado no movimento sindical, o PT juntou facções significativas da Igreja Católica e boa parte da esquerda revolucionária, além de pós-materialistas, como Claudio Couto, do departamento de gestão pública da Fundação Getúlio Vargas, qualifica lideranças comprometidas com temas ambientais, feministas, de minorias, entre outros. Ocupou um "lugar de mercado" que, em tese, ele sublinha, poderia ter sido do Partido Comunista Brasileiro (PCB) que, na ilegalidade e fragmentado por lutas internas, não conseguiu se reorganizar depois da anistia.
Toni Pires/Folha Imagem
Dilma Rousseff, pré-candidata do PT ao Palácio do Planalto
Essa composição heterogênea tinha um denominador comum na luta pela redemocratização do país e uma perspectiva de transformação do capitalismo, traduzida em vagas menções ao socialismo.
A heterogeneidade guardava ingredientes contraditórios. "Os segmentos representados pela Igreja se pautavam por argumentos populistas, enquanto os sindicalistas tinham uma perspectiva fortemente liberal e até neoliberal, já que seu interesse era o de obter ganhos na relação capital e trabalho e defender a livre negociação, sem interferência do Ministério do Trabalho", diz o cientista político Milton Lahuerta, da Universidade Estadual Paulista (Unesp). As contradições nas matrizes fundadoras impediam que o partido explicitasse claramente perspectivas de futuro. "Isso ajuda a entender porque o PT buscou afirmar e reafirmar sua superioridade ética em relação aos demais partidos", acrescenta Lahuerta. O PT ingressa na cena política avesso a alianças e sem forjar em sua base uma cultura política que aceitasse a ideia de compor com forças consideradas "conservadoras".
Essa indisposição começou a mudar em 1982, quando o PT optou por entrar no jogo eleitoral, conquistando algumas prefeituras e algumas vagas no parlamento, aliando-se, preferencialmente, a partidos do chamado "campo da esquerda". "O PT abriu-se para coligações e passou a compartilhar palanques", analisa Rachel Meneghello, da Universidade de Campinas (ver artigo na página 7).
O ingresso no jogo democrático teve um preço, do ponto de vista da organização interna. "No sistema eleitoral brasileiro, a competição é mais intrapartidária do que intepartidária. E isso, no PT, era mais agudo", diz Weffort. "Ingressei num partido solidário com os interesses dos trabalhadores e com a ideologia socialista. Aí veio a Constituinte e a queda do Muro de Berlim, em 1989, e esses ideais, ao meu ver, foram sendo pulverizados."
Ao longo dos primeiros anos, o partido teve características de movimento e foi pouco propositivo. Quando chegou ao governo, as duas lógicas - a de partido e de movimento social - se chocaram. "A tensão está na raiz dos conflitos da administração petista em Diadema, Santos, São Paulo e Fortaleza", exemplifica Weffort. "Muitas vezes, o partido foi o principal opositor dos governos petistas."
Nas eleições presidenciais de 1989, "a cúpula" da matriz sindical e as lideranças da esquerda revolucionária abrigadas no PT constituíram um bloco de forças, representado pelo "campo majoritário", e imprimiram ao partido uma "migração para o centro", analisa Lahuerta. "O José Dirceu queria uma aliança com o PMDB. Não deu certo porque a cultura política do partido não admitia."
As eleições de 1989 revelaram que o discurso de redemocratização, com viés socialista, não repercutira no eleitorado, sobretudo nas camadas mais pobres. A candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva foi derrotada pelos "setores menos esclarecidos e mais desfavorecidos da sociedade", reconheceu em entrevista o próprio Lula. "Temos que ir para a periferia, onde estão milhões de pessoas que se deixam seduzir pela promessa fácil de casa e comida."
André Singer, professor do departamento de ciência política da USP, ex-porta voz do primeiro governo Lula, entende a rejeição dos "setores menos esclarecidos" como uma manifestação de resistência a opções que colocassem a ordem em risco. A esquerda era preterida em favor de "uma solução pelo alto" - escreveu Singer no texto "Raízes Sociais e Ideológicas do Lulismo", publicado na revista "Novos Estudos", do Cebrap, invocando antecedentes "clássicos", descritos por Marx em "O 18 Brumário de Luís Bonaparte".
Apesar de ganhar institucionalidade nos Estados e municípios, em nível nacional o PT era visto como um partido de oposição a "tudo que existisse". "O eleitor percebia que o discurso socialista era de mentirinha", avalia Couto.
Em 1994 e em 1998, o "conservadorismo popular", acionado pela inflação e pelo medo da instabilidade, venceu Lula outra vez. Mas foi suficiente para aprofundar as mudanças no PT. "As derrotas de 1989, 1994 e 1998 foram o fundamento para o partido reconhecer que a política de alianças deveria se aprofundar e ir além do campo da esquerda, colando-se a um projeto mais amplo", analisa Rachel.
Nas eleições de 2001, o PT entrou na disputa com um perfil moderado. "Na 'Carta aos Brasileiros', o partido assumiu um discurso verdadeiro. Comprometeu-se com o controle de gastos, com o pagamento da dívida, com uma política fiscal austera e com metas de inflação", avalia Couto.
Havia, ainda, o êxito de dois governos do PSDB. "O partido reconheceu que as chances dependiam de que se abrisse para uma proposta mais próxima da social-democracia, aliando-se ao capital nacional", afirma Rachel.
Essa estratégia de alianças foi concebida pelo núcleo "pragmático" do PT, coordenado por José Dirceu e por Lula, lembra Lahuerta. "O PT não tinha como governar sem reproduzir o modelo do PSDB, de alianças mais conservadoras, e acabou por fazer acordo com partidos menores." Na campanha, sua principal base de apoio foram os eleitores de níveis superiores de escolarização nos Estados mais urbanizados e industrializados do Sul e do Sudeste, recorda Singer.
A estratégia de alianças com partidos "menores" desembocou no "mensalão" e na "crise moralista dos intelectuais do partido", diz Lahuerta. Em 2005, o PT só não se desmantelou por causa do carisma de Lula e da força de sua organização. "Depois da crise do 'mensalão'", observa Rachel, "o PT tinha 800 mil filiados, o que pode parecer pouco em relação ao tamanho do eleitorado mas, do ponto de vista da construção institucional, tem peso semelhante ao do trabalhismo na Inglaterra.
O "mensalão" fragilizou o PT diante da opinião pública e sua já comprometida unidade interna. E ainda custou a exclusão da cena política de lideranças parlamentares, como Antonio Palocci e José Dirceu. "Ao longo do segundo governo Lula, o partido não construiu lideranças nacionais", acrescenta Rachel.
Pesquisas da Fundação Perseu Abramo com delegados do PT mostram claramente a divisão que começa a ocorrer a partir de 2005, conta Rachel. "Não há consenso sobre determinações da cúpula, mas também não há uma recusa frontal."
Em 2006, Lula se reelegeu pelos feitos do governo e programas como Bolsa Família, políticas de controle de preços, aumento real do mínimo, crédito consignado. "Lula foi a grande contribuição do PT ao país", diz o senador Aloizio Mercadante. "O mundo reconhece hoje o Brasil como uma nação emergente e isso tem a ver com Lula e com os governos anteriores."
As ações governamentais do primeiro mandato aumentaram "a capacidade de consumo de milhões de pessoas de baixíssima renda", como atesta o acesso em grande escala à classe C, num contexto de manutenção da estabilidade com expansão do mercado interno, sobretudo para setores de baixa renda, diz Singer. Em 2006, ele aponta, o voto em Lula sofre uma mudança ideológica: aumenta em direção aos extremos, tanto à esquerda como à direita, e cai no centro. "Lula passa a representar uma opção nova, que mistura elementos de esquerda e de direita, contra uma alternativa de classe média organizada em torno de uma formulação de centro."
Lula começa, assim, a autonomizar sua ligação com o partido. "Ele fica maior que o PT e acima das contradições do PT, uma espécie de mito . Não é mais um representante de um setor social. Transforma-se numa espécie de mediador, acima das classes, falando tanto ao MST como aos usineiros", analisa Lahuerta. Surge o "lulismo".
"A desconexão entre as bases do lulismo e as do petismo em 2006 pode significar que entrou em cena uma força nova, constituída por Lula à frente de uma fração de classe caudatária dos partidos da ordem e que, mais do que um efeito geral de desideologização e despolitização, indicava a emergência de outra orientação ideológica, que antes não estava posta no tabuleiro", escreveu Singer.



Não se é novo aos 30 anosRachel Meneghello, para o Valor, de Campinas05/02/2010
Lula e sua mulher, Marisa, no dia em que tomou posse como presidente, em janeiro de 2003: o ponto máximo de uma história de enfrentamento do PT com o círculo de elites políticas tradicionais do país
Há 30 anos, no espaço das possibilidades legais que a ditadura militar abria com a reforma de partidos de 1979, o PT surgia como resultado da confluência de sujeitos políticos articulados no terreno dos movimentos sociais, para tornar-se um dos principais protagonistas da construção democrática no país. No conjunto de partidos que pontuavam a então frágil competição política, o partido emergiu como inquestionável novidade: uma organização política socialmente enraizada, gerada na matriz de uma esquerda que associava a construção do socialismo ao cotidiano das lutas sociais no horizonte da institucionalidade democrática.
De lá para cá, seu desenvolvimento foi notável. De seu primeiro experimento eleitoral em 1982 às eleições gerais de 2006, a bancada de deputados federais cresceu de 8 para 83, de 13 deputados estaduais no país para 126, de 1 Senador eleito em 1990 para 14. Em nível local, seu crescimento foi ainda mais destacado: de 2 prefeituras conquistadas em 1982 o partido passou a governar 558 municípios em 2008, e de 118 cadeiras de vereadores no país, passou a 4.162. Desse processo de organização resultou um número não menos notável de mais de 860 mil filiados, conforme dados de 2006, um montante a ser comparado com os fortes partidos social-democratas europeus. A vitória para a Presidência da República em 2002 foi o ponto máximo de uma história de enfrentamento do partido com o círculo de elites políticas tradicionais do país. Essa história, no entanto, teve um custo alto.
A mudança de postura frente à política de alianças já na campanha de 1994, ampliando o arco de forças para setores dissidentes das agremiações de centro e centro-esquerda, inseriu o partido no campo da disputa eleitoral. Os sucessivos testes eleitorais e as derrotas nas eleições presidenciais até 1998 levaram o partido a mudar, transformando seu perfil originalmente sectário e sua estratégia política restritiva, em favor da ampliação de suas bases eleitorais, da inclusão no jogo político e da sua viabilização como força governante.
Ao chegar à fase madura de vida, em que por duas vezes obteve o poder nacional, o Partido dos Trabalhadores mostra que não é imune às imposições do jogo entre partidos, da competição política e do exercício do poder.
As relações contraídas com o Estado promoveram mudanças organizacionais importantes. Esse foi um processo experimentado pelos partidos de esquerda na Europa, transformados em partidos eleitorais convencionais, quase independentes de movimentos de mobilização. Para o PT, além da desmobilização de suas instâncias de base e do relativo distanciamento dos movimentos sociais, o partido teve que dar conta das imposições da dinâmica de negociações do governo federal e dos constrangimentos apresentados pelas condições de governabilidade, em que a formação de coalizões políticas e de maiorias parlamentares se sobrepõe às discussões internas partidárias. Para além das irregularidades cometidas por lideranças do partido na crise de 2005, o experimento no governo federal pôs fim ao ciclo virtuoso de vida petista.
Uma das mais importantes alterações sofridas pelo partido foi o movimento de adaptação estrutural para a dinâmica do poder nacional, que resultou na autonomia do grupo partidário no governo. Isso afetou o projeto de democracia interna participativa, traduzido inicialmente nos núcleos de base, a mais importante novidade petista no campo da organização partidária, e depois no PED (processo interno de eleições diretas), que se origina no partido já em 2001. Hoje, apesar da desmobilização, o PED pode ser visto como positiva e persistente estratégia de mobilização de base; afinal, mais de 518 mil filiados tomaram parte no processo eleitoral em 2009.
Aos 30 anos, tendo optado por participar da política democrática, não há como manter as inovações. O processo de construção democrática no país definiu espaços de atuação e posicionamentos políticos necessários para a sua consolidação e o PT optou por dialogar com ele. Em ultima instância, a "Carta aos Brasileiros" estava embutida nesse diálogo.
Mas se o PT alterou sua trajetória inicial, essa estratégia mostrou-se acertada. Ao redefinir-se no jogo político, o partido possibilitou o crescimento e a viabilização partidária da esquerda no país e, apesar das mudanças, o PT se consolidou como um grande partido de massas de centro-esquerda. Se desde os anos 1990 o partido veio movendo-se lentamente para aproximar-se ao centro, foi esse processo que deu condições de compor forças para a vitória em 2002 e repeti-la em 2006. Uma vez no governo, encontrou o espaço necessário para implementação de políticas com claro timbre petista, como os programas de inclusão e redistribuição ampliada de renda.
Entrando agora na casa dos 31, o PT se vê em plena novidade, pela primeira vez sem Lula como candidato à Presidência. Nessa trajetória de mudanças, o partido não teve êxito, até o momento, em constituir outras lideranças de envergadura nacional e com viabilidade eleitoral, coisa pouco fácil em nosso sistema político, e a escolha de Dilma como candidata do partido resulta dessa condição.
A essa altura, é possível afirmar que o legado da gestão de Lula é hoje o mais poderoso recurso de organização do partido.
Rachel Meneghello é professora livre-docente do departamento de ciência política da Unicamp e diretora do Centro de Estudos de Opinião Pública da mesma universidade. Dentre suas publicações estão os livros "PT-A Formação de um Partido" e "Partidos e Governos no Brasil Contemporâneo", editados pela Paz e Terra










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