Thursday 22 January 2009

TRADE

Uma crise de comércio seria desastrosa
Jean-Pierre Lehmann23/01/2009
valor economico
Nesta hora de perigo, é preciso fazer soar bem alto a advertência de que a economia mundial pode estar diante do risco de um desastre. Não se trata de um aviso de Cassandra. O aviso é um enunciado retórico deduzido de um frio exame da realidade.
Existe pouco desacordo de que esta seja a pior crise financeira mundial (CFM) desde 1929. Levou algum tempo para absorvermos essa realidade, mas ela deixou de ser seriamente contestada. Entretanto, a "sabedoria convencional" continua sendo de que, embora uma repetição de 1929 possa estar ocorrendo, existe escassa probabilidade de uma repetição de 1930, em referência à aprovação da tarifa Smoot-Hawley em junho daquele ano, que lançou o mundo em protecionismo, guerras comerciais e as catastróficas repercussões sociais e econômicas que se seguiram. Em outras palavras, a CFM não degenerará numa crise de comércio mundial (CCM).
O comércio é a seiva vital absoluta da economia mundial, é o gerador principal de riqueza, e direta e indiretamente responsável por centenas de milhões de empregos. Além do aspecto econômico do comércio, trata-se de uma força crucial nas relações entre países. Nas palavras de Frédéric Bastiat, economista francês do Século XIX: "se mercadorias não cruzarem fronteiras, exércitos o farão". A criação do Mercado Comum Europeu após a Segunda Guerra Mundial foi o mais importante fator contribuinte para pôr fim à endêmica guerra interna européia. O Leste Asiático é um exemplo mais recente onde o campo de batalha regional que prevaleceu durante várias décadas foi transformado num mercado, do qual resultaram imensos benefícios de paz e prosperidade para suas populações. Se outras regiões do mundo, especialmente a Ásia Meridional e Central, o Oriente Médio e a África - o "arco de instabilidade" na comunidade mundial - pudessem seguir o exemplo do Leste Asiático, também estariam desfrutando muito mais paz e prosperidade.
Portanto, o comércio é absolutamente vital. Mas o atual consenso generalizado de que não haverá crise comercial pode estar errado. A percepção repousa sobre dois argumentos. Um deles é que nós aprendemos com a história, e o mesmo erro não será repetido. O segundo é que, diferente da década de 30, quando não havia regras e instituições balizando o comércio internacional, hoje existe um regime de comércio mundial baseado em regras multilaterais. O primeiro argumento pode ser descartado como anseio irrealista. Quanto ao segundo, em última instância, as instituições são tão fortes - ou tão fracas - quanto o apoio político de que desfrutam. E é por isso que existe razão para temor.
Desde o momento em que eclodiu a GCF, houve apreensão sobre os riscos de protecionismo. Os riscos são ainda maiores pelo fato de as últimas duas décadas terem visto a rápida emergência de novos e enormes atores comerciais, a China em especial, e consideráveis desequilíbrios comerciais. A declaração feita na cúpula do G-20 em Washington, DC, em 15 de novembro, foi portanto recebida com alívio. A seção relevante sobre o comércio contida no parágrafo 13 diz o seguinte:
"Enfatizamos a importância crucial de rejeição ao protecionismo e de não nos voltarmos para dentro em momentos de incerteza financeira. Nesse contexto, nos próximos 12 meses nos absteremos de erguer novas barreiras a investimentos ou ao comércio de bens e serviços, impor novas restrições a exportações ou pôr em vigor medidas para estimular exportações incompatíveis com a Organização Mundial de Comércio (OMC). Além disso, nos empenharemos em chegar a um acordo neste ano sobre modalidades que produzam uma conclusão bem-sucedida na Agenda de Desenvolvimento de Doha da OMC, com um resultado ambicioso e equilibrado. Nós instruímos nossos ministros de Comércio alcançar esse objetivo e ficar a postos para ajudar diretamente, conforme necessário. Também chegamos a um consenso de que nossos países têm o maior interesse no sistema mundial de comércio, e portanto cada um deve fazer as contribuições positivas necessárias para alcançar tal resultado".
Tragicamente, porém, o G-20 fracassou no primeiro teste de casamento da retórica com a realidade. Em 12 de dezembro, quando mal secara a tinta da declaração do G-20, o diretor geral da OMC, Pascal Lamy, declarou que, apesar dos esforços intensos, ele teve de abandonar os planos para convocar uma reunião de ministros do comércio naquele mesmo mês com o objetivo de concretizar o que seus chefes políticos haviam se comprometido em fazer! A razão: ausência de vontade política! Se o empenho em chegar a um acordo até o fim do ano não pode ser viabilizado, por que deveria alguma credibilidade ser dada à promessa de que não recorrerão a novas medidas protecionistas?
Até que isso aconteça, as perspectivas para o comércio - e portanto, para a economia mundial de mercado - são sombrias, e ainda mais as conseqüências sociais. Pela primeira vez em décadas, o comércio diminuirá, este ano, em dose considerável. Isso se deve em parte ao colapso da demanda resultante da crise financeira e da decorrente crise na confiança do consumidor. Além disso, o financiamento para comércio evaporou. O setor de transporte marítimo foi paralisado. Enquanto mercadorias acumulam em portos e galpões, as filas de trabalhadores demandando seguro-desemprego se alongam. Na China, dezenas de milhares de trabalhadores despedidos são vistos apinhados em estações ferroviárias, enquanto esperam voltar para seus vilarejos - com as carteiras vazias e os corações amargurados.
O futuro poderá revelar se a recentes turbulência social na Tailândia e os atuais distúrbios na Grécia estão, de alguma forma ligados à crise ou entre si. Mas é certo que haverá mais dessas cenas em todo o mundo à medida que a recessão mundial continuar a impor seu impacto negativo. A sedução de reações populistas para prevenir turbulência social e obter apoio irão tornar-se muito fortes. O protecionismo é uma das armas favoritas de populistas. As coisas poderão ficar muito, muito sérias.
A comunidade empresarial precisa nivelar sua própria retórica com a realidade. Em primeiro lugar, precisa reconhecer que lhe cabe considerável responsabilidade pela calamidade em que está a economia mundial. O mercado falhou - e falhou estrondosamente - porque os principais agentes do mercado - as empresas - falharam, ou, na melhor das hipóteses, foram insuficientemente vigilantes. Em segundo lugar, a comunidade empresarial precisa reconhecer que estamos à beira de um desastre cujas conseqüências serão sentidas por todos. Em terceiro lugar, as empresas devem aceitar que durante esta última década de imenso crescimento e aparentemente oportunidades ilimitadas, foram muito débeis a liderança e o comprometimento empresariais em relação ao regime de comércio mundial e, especificamente, à Rodada Doha da OMC. Em quarto lugar, as empresas, portanto, devem assumir toda medida possível para assegurar que a retórica do engajamento político no sentido de prevenir o protecionismo e evitar uma repetição da década de 30 seja traduzida em realidade. Isso não se deve a razões de altruísmo, mas por razão de auto-interesse esclarecido, em verdade, de auto-preservação.
Jean-Pierre Lehmann é professor de Economia Internacional no IMD e diretor fundador do "The Evian Group".


FOLHA DE SÃO PAULO
São Paulo, segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009
ENSAION. GREGORY MANKIW
Não é hora para protecionismo
Que abordagem o governo de Barack Obama e a maioria democrata no Congresso dos EUA darão à política econômica internacional? É cedo para dizer, mas os sinais até agora têm sido preocupantes. Pouco antes da sua confirmação como secretário do Tesouro, Timothy Geithner desafiou os chineses por conta da taxa de câmbio dólar/yuan. O presidente Obama, disse ele, "acredita que a China está manipulando sua moeda". "Países como a China não podem continuar tendo passe livre para solapar os princípios do comércio justo", acrescentou. Como muitos economistas, me arrepio sempre que ouço o termo "comércio justo". Em geral, o slogan não passa de uma palavra de ordem em prol do protecionismo. Dias depois de Geithner apontar o dedo contra a China, Wen Jiabao, primeiro-ministro chinês, apontou o dedo de volta. Falando no Fórum Econômico Mundial em Davos, Wen culpou os EUA pela crise econômica que o mundo atravessa. Falou em particular sobre "o fracasso da supervisão financeira". Provavelmente, Wen estava ciente de que um dos atores importantes no sistema de supervisão nos EUA era Geithner, que até recentemente presidia o Fed (Banco Central) de Nova York. Wen poderia estar sugerindo -corretamente- que o novo secretário do Tesouro deveria voltar suas energias para consertar problemas um pouco mais próximos de casa. Mas será que Geithner tem razão? Os americanos são mesmo prejudicados pela política cambial chinesa? Críticos da China dizem que Pequim mantém o yuan desvalorizado para obter vantagem no mercado internacional. O yuan mais barato torna produtos chineses menos caros nos EUA e produtos americanos mais caros na China. Por isso, os produtores americanos acham difícil competir com mercadorias chinesas. Há, porém, um outro lado da história. O prejuízo dos produtores americanos é acompanhado de um ganho para milhões de consumidores dos EUA que preferem pagar menos por camisetas e televisores importados da China. Geithner e outros críticos da China poderiam também ponderar como os chineses mantiveram o yuan desvalorizado. A essência da política é fornecer yuans e exigir dólares no mercado cambial. Os dólares que a China acumula nessas transações são então investidos em títulos do Tesouro americano. Então, quando o secretário do Tesouro se queixa do yuan desvalorizado, sua mensagem aos chineses se resume ao seguinte: parem de nos emprestar dinheiro. No momento em que os EUA enfrentam déficits orçamentários excepcionalmente grandes, o mais alto funcionário financeiro da nação deveria pensar cuidadosamente antes de elevar o tom com um de seus maiores credores. A queixa de Geithner também parece ultrapassada. A cotação yuan/dólar se deslocou consideravelmente nos últimos anos. Após um longo período de câmbio totalmente fixo, a China permitiu que sua moeda começasse a se mexer em julho de 2005. Desde então, ela se valorizou 21%. Geithner pode achar que o yuan precisa subir mais, mas por que ressaltar tanto o tema neste momento específico? Olivier Blanchard, economista-chefe do Fundo Monetário Internacional, acertou quando disse que "provavelmente não é a hora certa para focar na taxa de câmbio chinesa, já que ela não é um elemento central da crise mundial". "Há muitas outras coisas nas quais deveríamos pensar", afirmou. Voltar as atenções para a moeda chinesa em meio a uma recessão mundial e a crescentes temores de uma depressão é mais do que uma distração. É claramente contraproducente. Os senadores Charles Schumer (democrata) e Lindsey Graham (republicano) há muito propõem lidar com a desvalorização do yuan impondo tarifas sobre as importações chinesas. Os comentários do secretário do Tesouro ameaçam atiçar essas brasas protecionistas. Apesar de ter convocado muitos economistas de primeira linha, com impecáveis credenciais de livre comércio, Obama tem sido pouco incisivo em sua oposição pública a este protecionismo sorrateiro. Pode ser uma boa hora para lembrar o legado do senador Reed Smoot e do deputado Willis Hawley, ambos republicanos. A lei tarifária de 1930 que leva o nome deles não provocou a Grande Depressão, mas contribuiu para afundar o comércio mundial e indubitavelmente foi um passo na direção errada. Ao sairmos dos destroços da nossa crise econômica, um recuo para o isolacionismo é um equívoco que queremos ter certeza de não repetir.
N. Gregory Mankiw é professor de economia em Harvard e foi consultor do ex-presidente George W. Bush


São Paulo, domingo, 15 de fevereiro de 2009
O globo quadradoEM REAÇÃO À CRISE ECONÔMICA, GOVERNOS REVEEM LIBERALISMO E ENDURECEM FRONTEIRAS NACIONAISLUIZ FELIPE DE ALENCASTROCOLUNISTA DA FOLHA
Barack Obama, todo mundo sabe, é filho de africano, conviveu com muçulmanos, cresceu na Indonésia e aparece como o mais viajado dos presidentes americanos. Timothy Geithner, seu secretário do Tesouro (ministro da Fazenda), passou parte de sua vida na África e na Ásia, fala mandarim e japonês e trabalhou na diretoria do Fundo Monetário Internacional, pregando aos países em crise, inclusive ao Brasil, as virtudes do livre comércio. Apesar do cosmopolitismo da dupla, coube a Geithner dar voz à primeira advertência protecionista formulada pelo presidente Obama: não podemos aceitar que a China desvalorize o yuan para dopar suas exportações. O aviso soou como um aval às teses de congressistas que propugnam um aumento de tarifas sobre as importações chinesas nos EUA. Por enquanto, Pequim se ateve ao protesto verbal. O primeiro-ministro, Wen Jiabao, responsabilizou Washington pela crise, apontando "o fiasco da supervisão financeira" exercida pelas autoridades americanas, incluindo Tim Geithner, presidente do Federal Reserve, na unidade de Nova York, nos últimos anos. Pouco depois, o pacote de estímulo à economia da Câmara dos Representantes incorporou cláusulas "buy american" [compre produtos norte-americanos], vetando o uso de aço e ferro estrangeiros nas obras de infraestrutura nos EUA. A iniciativa foi atribuída ao lobby da AFL-CIO, maior organização sindical americana e aliada histórica do Partido Democrata. No Senado, o princípio "buy american" foi praticamente suprimido, graças a vários senadores, entre os quais se destacou John McCain. Para muitos analistas, o presidente Obama hesitou, e uma colunista do "Washington Post" o chamou de "imaturo", fórmula usada para classificar incompetentes que têm menos de 45 anos. Observadores pessimistas viram nesses incidentes a confirmação de uma velha tendência americana: a saída dos republicanos, abertos ao livre comércio, traz de volta o protecionismo à Casa Branca, pela mão dos democratas, mais sensíveis à pressão dos sindicatos. Reservado até agora aos presidentes latino-americanos, o epíteto "populista" foi colado pelos republicanos nas costas de Obama durante a campanha eleitoral e continua pautando comentários sobre sua política assistencialista e seu viés alegadamente protecionista. No outro lado do Atlântico, o presidente francês, Nicolas Sarkozy, ao anunciar o pacote de 5,5 bilhões em favor da indústria automobilística francesa, exigiu "contrapartidas" para manter os empregos no país. Num ataque à Peugeot, criticou as montadoras francesas que abrem fábricas na República Tcheca para exportar carros para a França. Dias antes, a ministra da Fazenda do país, Christine Lagarde, havia declarado: "O protecionismo pode ser um mal necessário". Depois a ministra se retratou, mas a frase ressoou longe. Procurando acalmar os outros países europeus, o primeiro-ministro, François Fillon, garantiu à Comissão Europeia (órgão diretor da União Europeia) que Paris não faria pressão para as fábricas francesas se reinstalarem na França. Mas a República Tcheca protestou, e espoucaram manifestações em Valladolid, na Espanha, onde há boatos de que a produção da fábrica local da Renault será transferida para a França. Aproveitando a derrapada da França, Alistair Dairling, ministro da Economia britânico, declarou que "é preciso ser muito duro contra o protecionismo", propondo-se a defender essa política na reunião dos ministros de finanças do G7, neste fim de semana em Roma. Apesar dessas proclamações, o Reino Unido também joga suas cartas protecionistas no setor bancário, onde, segundo a "Economist", as manobras para proteger o mercado nacional são mais fortes do que no setor industrial. Nacionalizados pelo governo do primeiro-ministro Gordon Brown, os bancos RBS e Lloyds TSB obedecem a diretivas para aumentar seus empréstimos na Inglaterra, retirando-se, se for preciso, dos mercados estrangeiros. Um aspecto mais maligno do protecionismo surgiu na refinaria de petróleo de Lindsey, no leste do país. Furiosos contra uma empreiteira italiana que -dentro de toda legalidade e de acordo com a legislação europeia- trouxe seus operários especializados italianos e portugueses para ampliar a refinaria, os operários ingleses entraram em greve. No meio da nevasca, dezenas deles desfilaram na frente da refinaria carregando cartazes onde estava escrito: "Emprego britânico para trabalhadores britânicos". Caos bancário, estagnação econômica, tensões sociais, protecionismo, xenofobia. Em escala desigual, estas etapas reproduzem os primeiros desdobramentos da crise de 1929. Mas há ainda uma chance de consertar os estragos: todo mundo sabe que esse encadeamento fatal explodiu numa grande conflagração mundial.
LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO é historiador e professor na Universidade de Paris 4. É autor de "O Trato dos Viventes" (Cia. das Letras) e escreve na seção "Autores", do Mais! .

Nacionalismo aumenta com recessão
DA REDAÇÃO
E spancada, na segunda passada, por skinheads em Dubendorf (Suíça), a brasileira Paula Oliveira acabou abortando a gravidez de gêmeos em decorrência dos ferimentos. Os agressores inscreveram a estilete, em suas pernas, a sigla do partido SVP -contrário à proposta, aprovada em referendo no domingo passado, de renovar e ampliar o acordo de imigração da Suíça com a União Europeia.Apesar de a maioria da população suíça ter se manifestado a favor do referendo, o crime não é o único exemplo da era da "desglobalização".O termo foi cunhado pelo premiê britânico, Gordon Brown, no final de janeiro para referir-se aos países que endurecem as relações com imigrantes e capitalistas estrangeiros. "Essa forma de desglobalização, que vai levar ao protecionismo comercial se não for interrompida, é algo de que venho advertindo as pessoas", disse.Seu mote "empregos britânicos para trabalhadores britânicos" foi apropriado no protesto de operários ingleses que rejeitaram a contratação de italianos e portugueses por uma refinaria de petróleo.O Senado italiano suscitou protestos ao aprovar lei que torna crime a imigração ilegal (com até quatro anos de prisão) e estimula os médicos a delatarem imigrantes. A lei ainda carece de aprovação na Câmara. Na França, o ministro da Imigração, Eric Besson, propôs recompensar com vistos os estrangeiros que denunciarem redes de imigração. Nos EUA, o plano de estímulo à economia de Obama (mais de US$ 700 bilhões) condiciona a ajuda financeira ao uso de material proveniente de fornecedores americanos.

Nações fora de lugar
AUTOR DA TEORIA DO FIM DA HISTÓRIA DIZ QUE A INTERVENÇÃO ESTATAL NA ECONOMIA REPRESENTA UMA "NOVA FASE" DO CAPITALISMO
John Giles - 4.fev.09 /Associated Press
Operários ingleses protestam contra a admissão de estrangeiros estendendo bandeira do país com a frase "empregos britânicos para trabalhadores britânicos" SÉRGIO DÁVILADE WASHINGTON
A atual crise econômica não é o fim da história nem do capitalismo, mas do reaganismo, diz Francis Fukuyama. Para o autor de tese sobre o fim da história, acabou o movimento que há 30 anos prega a não-intervenção no mercado. "Agora, vamos começar uma nova fase, com mais intervenção do Estado", disse à Folha, em entrevista por telefone. Professor da Universidade Johns Hopkins, o economista e filósofo norte-americano de origem japonesa divulga nesta semana, em Washington, o recente "Falling Behind - Explaining the Development Gap Between Latin America and the United States" (Ficando para Trás - Explicando a Distância no Desenvolvimento da América Latina e dos EUA, Oxford University Press, 336 págs., US$ 29,95, R$ 69), organizado por ele.

FOLHA - O que mudou na distância cultural-econômica entre a América Latina e os EUA desde que começou a estudar o assunto, em 2005? FRANCIS FUKUYAMA - Estamos no meio de uma crise econômica mundial, então tudo mudou para todo mundo. O que acho interessante nesta crise é que, desta vez, foi o mau gerenciamento nos EUA que a alavancou. A América Latina está sendo atingida, mas o dano até agora não é dos maiores, com algumas exceções, como a Venezuela. O gerenciamento macropolítico colocou os países da região em um bom lugar; ninguém vai passar por ela ileso, mas, em comparação com as décadas passadas, a América Latina está em uma posição muito melhor.
FOLHA - Então, após décadas de sermões do FMI e do Banco Mundial, a região superou os mestres? FUKUYAMA - Sim, está melhor que o professor, em certos aspectos. Acho que os EUA não seguiram os mesmos conselhos que dão a outros países e só conseguiram fazer isso por causa do papel do dólar como moeda forte, então a economia americana pôde seguir suas próprias regras. Se isso não acontecesse, o dólar teria despencado muito tempo atrás.
FOLHA - O sr. anteviu essa mudança de papéis? FUKUYAMA - Não, eu fiquei muito surpreso e não poderia imaginar que Wall Street sofreria esse colapso total.
FOLHA - De volta a seu estudo, como explicaria a distância entre a América Latina e os EUA? FUKUYAMA - É uma história que começa 300 anos atrás. No começo, havia regiões na América Latina com renda per capita maior que a da América do Norte. Por exemplo, em 1790, a renda per capita em Cuba era maior que a de Massachusetts. Mas essa distância foi crescendo de maneira consistente, às vezes com velocidade maior, outras menor. Contudo a razão mais importante para que isso acontecesse foi a grande desigualdade na estratificação social na América Latina. Uma sociedade muito desigual pode crescer bastante, como aconteceu com o México ou o Brasil desde os anos 1950 até os anos 70 ou nos últimos cinco ou seis anos. Mas esses períodos de crescimento acabam por causa da instabilidade política e do fato de que a riqueza não é distribuída por toda a sociedade. Os longos períodos de instabilidade param o crescimento econômico, e é nesses momentos que a distância entre a América Latina e a América do Norte tende a ficar maior. Hoje em dia isso fica muito claro quando olhamos para países como Venezuela, Equador e Bolívia, em que há uma grande população de raças diferentes que nunca se sentiram incluídas no processo politico. O tipo de populismo que aparece hoje nesses países traz essas doenças sociais à tona, mas, a não ser que lidemos com elas de uma maneira séria e definitiva, a distância só vai continuar a crescer.
FOLHA - O sr. também rejeita a tese de que católicos são piores colonizadores que protestantes. FUKUYAMA - A identidade dos colonizadores é importante, mas não por conta da religião. Tem a ver com o jeito como aquelas autoridades gerenciavam os seus impérios. Alguns países, como México e Peru, foram estabelecidos apenas para que os colonizadores viessem levar o ouro e a prata desses lugares para as suas metrópoles e, para fazer isso, fizeram os índios virarem escravos e estabeleceram um sistema hierárquico muito duro. E essa política social foi levada adiante até para países que não tinham esses recursos naturais. Na América do Norte, o sistema era muito diferente, porque não havia ouro nem prata nem outros recursos minerais que fossem apreciados à época. Ao invés de virem buscar riquezas, os colonizadores trouxeram famílias de fazendeiros e deram pequenos pedaços de terra para que pudessem plantar e viver do que plantavam, e um governo foi estabelecido para cobrar imposto dessas pessoas. Foi melhor negócio para as colônias, em comparação com o que aconteceu com a América espanhola ou a portuguesa.
FOLHA - A crise atual pode levar a região a repetir erros do passado, como pôr a democracia em risco ou se voltar para o populismo? Há risco de a história se repetir? FUKUYAMA - Não é inevitável, mas é um grande risco. Até para quando as coisas estão indo bem. Nos últimos anos, esse tipo de populismo vem voltando à região em países como a Bolívia e a Venezuela e potencialmente até com a quase eleição de Lopes Obrador no México. E, obviamente, quando as coisas não vão bem, ainda mais com o descrédito das ideias vindas de Washington, esse pensamento tem tudo para voltar a ser alimentado. A única coisa que pode ajudar é que, acredito, as sociedades aprendem com o passar do tempo, então acho que as pessoas sabem que o populismo também tem seus perigos.
FOLHA - A eleição de Obama não mitiga esse risco? FUKUYAMA - Sim, se ele levar os EUA a uma direção completamente diferente, e a política americana é notável por se reinventar. Creio que estamos nesse processo. Finalmente saímos dos anos Reagan. Ideias diferentes vão começar a sair de Washington, e espero que haja um pouco mais de humildade na política externa, um enfoque mais cooperativo com outras nações. Se isso acontecer mesmo, os EUA podem recuperar um pouco da boa vontade e da credibilidade perdidas nos últimos oito anos.
FOLHA - Qual será o papel do Brasil nesse "novo mundo"? FUKUYAMA - É um papel muito importante, porque o país dá o tom para o que vai acontecer nos outros países na região. Acho que uma das razões pelas quais a América Latina como um todo está se saindo bem é que os dois últimos presidentes do país foram bons líderes. O que acontece no Brasil tem um impacto muito importante nos outros países.
FOLHA - O que mais a região deveria estar fazendo e não está? FUKUYAMA - Se olharmos para as origens da desigualdade, algumas são herdadas do passado, mas é quase tudo resultado de políticas sociais, que na América Latina são reforçadas o tempo inteiro. Se compararmos seu nível de desigualdade com o de lugares como o Japão ou a Europa Ocidental ou mesmo os EUA, há uma redistribuição de renda substancial dos mais ricos para os mais pobres. E isso não acontece na América Latina porque os gastos públicos acabam ajudando as elites ou a classe média. Então daria para fazer muita coisa só com a redistribuição desses gastos, se você conseguir passar pela oposição de grupos políticos que representam essas elites.
FOLHA - O Bolsa Família seria um mecanismo? FUKUYAMA - É um programa social relativamente bem feito e que foi criado para diminuir essa desigualdade. Economistas que estudaram o Bolsa Família provaram que a iniciativa foi bem-sucedida. Meu medo é que a crise faça desses programas sua primeira vítima. O outro perigo é que a corrupção ainda existe e pode fazer esse dinheiro ir para os protegidos dos políticos em vez de ir para os mais pobres de verdade. Isso já acontece na Nicarágua, mas, até onde sei, ainda não acontece no Brasil. Mas é um perigo, e a sociedade deve prestar atenção.
FOLHA - Como o mundo sairá da crise? FUKUYAMA - Não sei o que vai acontecer no resto do mundo, mas acho que os EUA estão caminhando para uma recessão bem longa, porque passamos os últimos 30 anos gastando mais do que tínhamos, especialmente nos últimos oito anos. E será muito difícil recomeçar o processo de crescimento com toda essa dívida. Sou moderadamente pessimista nesse aspecto. E isso vai ter um impacto no resto do mundo, porque os EUA serviram como o motor do consumo mundial.
FOLHA - As ações do novo governo vão funcionar? FUKUYAMA - Suspeito que esse plano não será suficiente e, se você olhar para os detalhes, há várias coisas que poderiam ser diferentes. O problema é que, quando você se oferece para gastar US$ 800 bilhões, muitos interesses políticos acabam sendo envolvidos e muitos gastos previstos não vão aos lugares certos. Dá para fazer muitas críticas, mas também não vejo alternativa nesse momento.
FOLHA - Será o fim não da história, mas do capitalismo como o conhecemos? FUKUYAMA - É o fim do reaganismo, não do capitalismo, de um movimento que há 30 anos prega a não-intervenção no mercado. Não, não é o fim do capitalismo, mas um movimento pendular geracional nas políticas e nas ideias.Não estou condenando o reaganismo, que foi muito importante para o mundo: a liberalização da economia brasileira no governo de Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, foi muito importante, apesar de não ter ido tão longe quanto deveria, mas tirou o Brasil da hiperinflação e da péssima situação macroeconômica em que estava antes.Mas essa fase acabou, agora vamos começar uma nova, com mais intervenção do Estado. De novo, não é o fim do capitalismo, é só mais um ciclo da economia e da história.

Clima pesado
PROFESSOR NA UNIVERSIDADE DA CALIFÓRNIA, O URBANISTA MIKE DAVIS DEFENDE A REDISTRIBUIÇÃO DO PODER GLOBAL PARA COMBATER OS EFEITOS AMBIENTAIS DA CRISE ECONÔMICA
Obama comprometeu seu programa ambiental ao demonstrar entusiasmo pelo "carvão limpo"
É preciso uma estratégia mundial para o aquecimento global
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Pelos menos duas grandes crises assustam as previsões para o decorrer deste ano -e, possivelmente, dos próximos também. Uma delas, já bastante difundida e prontamente socorrida pelos governos, diz respeito ao estado de incertezas que recobre a economia global. A outra, a crise climática e ambiental, ainda parece, no entanto, coisa de um futuro distante -embora já esteja ocorrendo agora, como alerta, em entrevista à Folha, o urbanista Mike Davis. Professor na Universidade da Califórnia, Davis lembra que "o clima está mudando mais rápido do que a capacidade de adaptação de plantas e animais". Cita como exemplos as nevascas que vêm atingindo a Inglaterra nas últimas semanas ou as alterações climáticas no sudoeste dos EUA, no norte do México e no leste da região banhada pelo mar Mediterrâneo, locais que têm se tornado mais secos e quentes. Crítico das implicações ambientais do capitalismo, Davis é autor de obras como "Planeta Favela" (Boitempo) e "Cidades Mortas" (Record). Para ele, "a mudança climática ainda não assumiu um papel central na geração de um colapso econômico, embora tal conjuntura seja obviamente previsível". Ele aponta, por exemplo, que o aumento no preço dos grãos, em 2008, foi resultado, em parte, dos desastres climáticos dos últimos dez anos. Na entrevista abaixo, Davis defende que "as mudanças para salvar o planeta devem envolver a redistribução do poder econômico e a redefinição dos padrões de consumo em níveis sociais e globais". (ESM)

FOLHA - Qual é a relação entre as mudanças climáticas das últimas décadas e a atual crise econômica? MIKE DAVIS - Os desastres climáticos da última década quase destruíram a indústria global de seguradoras e contribuíram para a perigosa e recente inflação nos preços de grãos. Mas a mudança climática ainda não assumiu um papel central na geração de um colapso econômico, embora tal conjuntura seja previsível. Por outro lado, graças à crise e à campanha de Barack Obama, o "keynesianismo verde" emergiu como uma ideia poderosa que poderia reagrupar o movimento ambiental e os sindicatos em torno do investimento público no emprego, gerando investimentos públicos em infra-estrutura verde. Corporações lobistas, naturalmente, aceitam o slogan de que uma infra-estrutura verde está tão distante quanto a possibilidade de transformar uma política para indústrias de alta tecnologia e riscos capitalistas. Entretanto a simples introdução da ideia no discurso público é um progresso e oferece uma nova ligação entre verdes e trabalho.
FOLHA - O sr. acredita que o governo Obama irá tratar com mais responsabilidade que o governo George W. Bush os impactos da crise ambiental e climática? DAVIS - Sim, e Obama não somente cooperará com a União Europeia e outros países que assinaram o Protocolo de Kyoto [tratado internacional que prevê a redução na emissão de gases poluentes na atmosfera], mas provavelmente abrirá um novo canal para negociações climáticas com os chineses. Contudo, é uma outra questão prever se as negociações produzirão resultados sérios. Os países europeus que tomaram a direção das negociações sobre o clima estão agora divididos internamente e indecisos, logo há expectativas fantasiosas -como sobre a economia e a capacidade de Obama de se tornar líder mundial. Mesmo nos EUA prometeu mais do que poderia, pois sua agenda de trabalho será moldada pelo Congresso. Além disso, ele comprometeu seu próprio programa ambiental ao demonstrar entusiasmo pelo "carvão limpo". Pois os carros elétricos terão pouco impacto na redução do aquecimento global se a eletricidade continuar a ser produzida com carvão.
FOLHA - Diante da crise ambiental, que novo clima está a caminho? DAVIS - Estamos vivendo em uma nova Terra. No próximo século, o sistema climático global será governado por níveis de acumulação de gases sem precedentes nos últimos 3 milhões de anos. A maior retenção da energia solar conduzirá a mais eventos climáticos extremos; contudo, e mais importante, reorganizará padrões de chuvas regionais e temperaturas, com grandes implicações para a agricultura irrigada e a qualidade da água consumida nas cidades. O papel de massas polares marítimas, produtividade agrícola, poluição urbana etc. complicará enormemente a constituição de climas futuros. Mas duas tendências estão claras: o aquecimento acelerado das altas latitudes do hemisfério Norte, com o consequente derretimento do gelo marinho, e a dramática expansão de regiões semiáridas nas latitudes médias. De acordo com os estudos de ponta de Richard Seager e sua equipe no Lamont-Doherty (laboratório da Terra da Universidade Columbia, nos EUA), as condições climáticas no sudoeste americano, no norte do México e, possivelmente, no leste do Mediterrâneo já estão mudando, com estações mais quentes e mais secas. Em muitos casos, o clima está mudando mais rápido do que a capacidade de adaptação de plantas e animais, provocando, desse modo, a extinção de espécies e simplificações ecológicas. É mais fácil, claro, visualizar os rápidos processos e as singularidades catastróficas -gigantescos furacões, secas épicas etc.- do que ver os aspectos mais lentos, porém ainda mais poderosos, da mudança do clima -diminuição gradual da produção agrícola, desertificação crescente etc.
FOLHA - A nevasca que caiu no Reino Unido no início deste mês foi a pior dos últimos 18 anos no país, paralisando aeroportos, o sistema de transportes e acarretando enormes prejuízos econômicos. As metrópoles serão os espaços que mais sofrerão com as mudanças climáticas? DAVIS - Bem, clima atípico é clima. Os indícios científicos ligados ao aquecimento global não são visíveis apenas em algum caso particular. Por essa razão, um observador prudente hesitaria em atribuir a nevasca em Londres e mesmo o furacão Katrina [que destruiu a cidade de Nova Orleans, no sul dos EUA, em 2005] a uma mudança climática antropogênica. Por outro lado, a incidência de colapso dos sistemas urbanos por eventos climáticos extremos tem aumentado. Serão necessários trilhões de dólares para adaptar as cidades, mesmo as ricas, ao clima novo e "normal" que está chegando.
FOLHA - Na sua opinião, os programas de combate ao aquecimento global têm sido eficientes? DAVIS - Não, falharam até em relação a expectativas modestas. Kyoto teve impacto insignificante, e as emissões de gases de 2000 a 2007 aumentaram mais rapidamente do que era previsto nos piores cenários. E há um otimismo público pequeno, em meio à crise econômica mundial, de que a conferência do clima de Copenhague [na Dinamarca, onde se discutirá, em dezembro, um acordo substituto para o Protocolo de Kyoto, que expira em 2012], produzirá uma continuação séria de Kyoto. Alguns países europeus, incluindo Alemanha e Itália, estão indo agressivamente atrás de carvão -o combustível fóssil mais sujo e mais barato. Precisamos de uma estratégia mundial para a adaptação ao aquecimento global, assim como a redução nas emissões de gases de efeito estufa. Mas, graças ao fracasso dos países ricos em reduzir as emissões, a maioria dos impactos ruins cairá sobre países mais pobres, com menos meios para adaptar seus sistemas agrícolas, recursos hídricos e ambientes construídos. Por isso é que devemos lutar para ganhar o reconhecimento da "dívida ecológica" que o Norte tem com o Sul: somente grandes transferências de renda podem permitir que os países mais pobres invistam em adaptações significativas (colheitas novas e irrigação de gotejamento, conservação da água urbana, energia solar etc.)
FOLHA - A defesa do ambiente exige a atuação conjunta de mudanças individuais de atitude e políticas públicas que alterem hábitos coletivos de consumo. Como implementar de maneira eficaz tais processos? DAVIS - Promover uma ética verde em nível individual é importante, e nós deveríamos ser responsáveis pelos nossos impactos ecológicos.Não tenho nenhuma simpatia por ecologistas que querem salvar a Terra reduzindo a população humana a níveis pré-industriais, mas entendo a confusão sobre como traçar o círculo da sustentabilidade com a urgência do fim da pobreza.Como todos sabemos, diversas Terras adicionais seriam exigidas para permitir que toda a humanidade viva em uma casa suburbana com um estilo de vida norte-americano, com dois carros e um gramado.Minha própria solução abstrata para esse enigma, que será o assunto de meu próximo livro, é substituir, tanto quanto possível, o consumo público pelo privado. Acredito que a pedra angular da cidade do baixo-carvão, mais do que qualquer desenho verde ou tecnologia em particular, é a prioridade dada à afluência pública sobre a riqueza privada.A maioria das cidades contemporâneas, em países ricos ou pobres, contém capacidades ambientais potenciais inerentes aos densos assentamentos humanos. O gênio ecológico da cidade permanece um poder vasto, quase sempre escondido.Mas não há nenhuma deficiência planetária da sua "capacidade de carga" se nós estamos dispostos a fazer do espaço público democrático o motor da igualdade sustentável.A afluência pública -representada por grandes parques urbanos, por museus livres, por bibliotecas e possibilidades infinitas para a interação humana- representa uma rota alternativa para um rico padrão de vida personificado em uma carnavalesca sociabilidade.O Brasil, apesar de suas gigantescas desigualdades, tem sido um laboratório avançado para as experiências que unem democracia popular, economia verde e espaço público.


Reforma institucional deveria ser inclusiva
Lorde Malloch Brown
12/02/2009
Esta não é a primeira vez em que o mundo enfrenta uma crise econômica com a escala da atual recessão econômica. Em 1933, enquanto bancos desmoronavam e o desemprego disparava como resultado do crash de Wall Street, os líderes mundiais reuniram-se em Londres para encontrar um caminho comum que os levasse à frente. Franklin Roosevelt condenou os "velhos fetiches dos chamados banqueiros internacionais" e ressaltou a importância de revigorar a economia mundial.
Os anos 1930 e a década seguinte não entraram para a história como exemplo de cooperação internacional, mas como um alerta gritante para futuras gerações sobre o que acontece quando conflitos internacionais triunfam sobre o comprometimento conjunto. Na Cúpula de Londres, em abril deste ano, teremos uma grande oportunidade de mudar a história: de construir as bases para uma cooperação internacional mais sólida para resistir a esta crise e às décadas por vir.
Desde que a escala da crise econômica ficou clara, governos por todo o mundo, incluindo os do Reino Unido e Brasil, lançaram as fundações para a recuperação. Fornecemos capital ao sistema bancário, estímulos fiscais e monetários para a economia e crédito para ajudar as empresas interessadas em investir e criar empregos. Todos nós, no entanto, precisamos fazer mais. Como mostrou a crise, agora somos todos interdependentes e interconectados e precisaremos trabalhar juntos. Estou muito satisfeito de estar no Brasil nesta semana para descobrir como levar essa parceira adiante em abril.
No centro de nossa visão por uma economia mundial revigorada está um internacionalismo mais inclusivo. Vivemos em um mundo globalizado no qual, até 2050, as economias de Brasil, Rússia, Índia e China igualarão a participação do G-7 no PIB mundial. Está claro que as decisões sobre o futuro da economia mundial não podem ser tomadas sem o Brasil e essas outras grandes potências - as economias emergentes do mundo - na mesa. As únicas soluções viáveis serão as que beneficiem não apenas o mundo desenvolvido, mas também o mundo em desenvolvimento. Isto vale para a economia, mas também para decisões sobre paz e segurança internacional e é por isso que apoiamos as aspirações do Brasil como membro permanente do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU).
Na reunião da Cúpula de Londres, esperamos ter progressos em várias áreas. Esperamos fortalecer os esforços para construir um sistema de alerta antecipado, para melhor prever futuras crises. Esperamos ter condições de trabalhar com os países superavitários para reequilibrar o crescimento mundial e assegurar que ninguém seja deixado para trás.
Na esfera macroeconômica, isto significará trabalhar para evitar contágios por meio de um Fundo Monetário Internacional (FMI) que tenha os fundos e instrumentos de crédito necessários e reencaminhar a Rodada Doha de uma forma que funcione tanto para as economias do G-20 como para as do mundo em desenvolvimento. Esperamos também que a Cúpula de Londres impulsione uma recuperação que seja de baixa emissão de gás carbônico. Como disse o primeiro-ministro Gordon Brown no Fórum Econômico Mundial passado, em Davos, "não podemos permitir-nos relegar a mudança climática entre as pendências internacionais por causa de nossas dificuldades econômicas".
Na esfera microeconômica, isto significará reafirmar nosso compromisso com as Metas de Desenvolvimento do Milênio e encontrar outras formas inovadoras de assegurar que os mais pobres sejam protegidos da retração mundial. Precisamos fazer nosso máximo para assegurar que as pessoas comuns não sofram com perdas de empregos e renda familiar.
Embora a Cúpula de Londres seja para dar sequência ao processo de recuperação da atual crise econômica, também precisamos manter um olho aberto para o longo prazo. Apenas será possível manter o mundo no caminho do crescimento sustentável com um internacionalismo mais inclusivo, centrado na reforma do Instituto Internacional de Finanças (IIF). É algo que o primeiro-ministro britânico, Gordon Brown, vem argumentado de forma reiterada, tendo declarado em 2008 que "precisamos construir instituições que promovam interesses mútuos por estarem fundamentadas em valores comuns". O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, declarou intenções similares.
Algum progresso foi obtido. Em abril de 2008, o conselho diretor do FMI aprovou uma grande reforma nas cotas de voto para refletir melhor as realidades econômicas da moderna economia mundial. Na semana passada, o primeiro-ministro britânico e o premiê da China, Wen Jibao, concordaram em avançar mais a partir dessas reformas de governança e cotas, incluindo mudanças no mecanismo de votação com as quais o Banco Mundial e o FMI concordaram em 2008. Claramente, entretanto, há muito mais a ser feito, tanto pelo FMI como pelos bancos de desenvolvimento regionais multilaterais.
Para construir um futuro global mais próspero precisamos aprender com os erros de nossos predecessores. Na Cúpula de Londres de 2009 precisamos não ceder ao nacionalismo e protecionismo. Precisamos superar nossas diferenças para erigir o que o presidente Lula chamou de uma "nova ordem econômica mundial" que funcione por igual para economias desenvolvidas e em desenvolvimento. O futuro de ambas está em jogo - e ambas precisam ser parte da solução.
Lorde Malloch Brown é enviado especial do primeiro ministro britânico da Cúpula do G-20.




Na OMC, países questionam os pacotes de estímulo
Assis Moreira, de Genebra
10/02/2009
O Brasil deu o tom no ataque a subsídios embutidos nos programas de estímulo econômico de vários países desenvolvidos, que já somariam US$ 3 trilhões, e a Organização Mundial do Comércio (OMC) decidiu que continuará a monitorar de perto as medidas que podem afetar as trocas globais. Na primeira sessão especial sobre a emergência do protecionismo no rastro da recessão global, cerca de 50 países se manifestaram, e a maioria acompanhou o Brasil na inquietação sobre os efeitos de planos de socorro a bancos, indústria automotiva, fabricantes de aço e de semicondutores, e que tendem a se propagar para outros setores mais rapidamente afetados pela queda na demanda global.
AP Photo/Keystone, Salvatore Di Nolfi
Pascal Lamy, diretor-geral da OMC, que ontem discutiu o risco de aumento do protecionismo no mundo: fase inicial de respostas à recessão econômica
O sentimento generalizado é de que medidas de proteção estão aumentando em torno do mundo para defender empregos e indústrias localmente, o que é visto como um veneno a mais para piorar a situação econômica global.
Apesar da preocupação manifestadas por muitos países, no entanto, a avaliação do diretor-geral da OMC, Pascal Lamy, foi de que, até agora, "há evidências limitadas" de alta de restrições comerciais ou medidas distorcendo o comércio tomadas no contexto da crise financeira e econômica global. Ele, no entanto, deixou claro: "Meu sexto sentido é de que estamos ainda na fase inicial de respostas políticas em torno do mundo rumo à recessão econômica."
Para a OMC, os efeitos do protecionismo só começarão a surgir em seis meses, através do aumento de investigações antidumping ou contra subsídios, para frear importações com preços considerados deslealmente baixos, e de medidas "criativas" para frear importações.
Em seu primeiro informe sobre eventual emergência de protecionismo, a OMC detalhou vários pacotes de estímulo econômico, sinalizando que embutem uma forma insidiosa de protecionismo por favorecer os produtores domésticos e que países em desenvolvimento não são capazes de fazer por falta de recursos.
O informe lista também os bilionários planos de socorro aos bancos, alertando que eles também podem resultar em distorções à concorrência entre instituições financeiras. Até agora, a OMC fez o monitoramento com base em artigos de jornais, mas espera, a partir de agora, detalhes por parte dos governos, se estes se dispuserem a informar.
Houve uma reviravolta no debate sobre protecionismo, com a maioria das delegações seguindo o tom do Brasil. O embaixador Roberto Azevedo destacou que o protecionismo no comércio não é apenas subir tarifas ou controlar importações, e inclui "qualquer forma de intervenção do governo que vai artificialmente em favor de empresas domésticas".
Ele advertiu que o "protecionismo é contagioso", e quando um setor recebe proteção especial ou suporte, outros logo pedem tratamento similar. "Pior ainda, ações adotadas por um governo não apenas inspiram outros governos, como virtualmente requerem ação por outros, em resposta direta a qualquer efeito negativo ou para evitar acusações de apatia ou incompetência", afirmou.
Azevedo observou que o protecionismo "propaga-se rapidamente através dos mercados nacional e internacional, tipicamente acompanhados por sentimentos de nacionalismo exacerbado", e que "é duro para ser revertido", porque quem conseguiu privilégios quer preserva-los. Ele usou como exemplo pacotes de estímulo econômico adotados por países desenvolvidos, com concessões, empréstimos, pagamentos diretos, capital etc, incluindo alguns que são receptores tradicionais de subsídios, como no setor agrícola.
"Os subsídios afetam duplamente, porque deslocam importações e turbinam exportações", afirmou Azevedo. O representante brasileiro manifestou preocupação igualmente com a falta de crédito para o comércio, que afeta duramente as exportacoes entre nações em desenvolvimento.
A delegação da Índia acrescentou que os US$ 3 trilhões de diferentes pacotes significam dinheiro retirado do sistema financeiro global "e o impacto será forte no fluxo de recursos para os países em desenvolvimento".
A União Europeia reagiu argumentando que os pacotes de estímulo vão possibilitar depois a retomada de importações e portanto são bons para todo mundo. "Pode vender isso como quiser, mas é subsídio", retrucou Azevedo.
Um negociador saiu rindo, irônico, da sessão especial, dizendo que "só havia anjos na sala", porque todo mundo acha que não está praticando barreiras ao comércio dos parceiros. A Índia alegou que um aumento de tarifas na importação de aço, mencionado pela OMC, foi um mal entendido. "Tínhamos baixado a tarifa por causa da inflação, mas agora que não há inflação, subimos a tarifa ao nível de antes."
A China, por sua vez, explicou que seu pacote econômico, que oficialmente chegaria a US$ 500 bilhões, destina-se a estimular o consumo interno e portanto é bom para o mundo. A Argentina reclamou que uma menção de que o Mercosul teria aprovado, sem aplicar, alta de 5% nas tarifas de vários produtos estava errada. E a Bolívia, Cuba e Venezuela reclamaram que o diretor da OMC não tinha mandato para fazer monitoramento de protecionismo.
Lamy prometeu que a entidade continuará a avaliar o impacto dos pacotes de estímulo sobre o comércio internacional, sem prejulgar se violam ou não as regras internacionais. Ou seja, o que a OMC concluir em seu informe não terá valor jurídico. Se algum país se sentir prejudicado por pacotes de outras nações, deve abrir uma disputa no órgão de solução de controvérsias.
Na sessão especial, o Brasil não acionou o mecanismo de disputa da entidade contra nenhuma medida protecionista, nem pediu que fosse criado um mecanismo de monitoramento contra o protecionismo, porque isso já existe. O que o país fez, depois de listar temores contra o protecionismo, foi usar a expressão tradicional de que está avaliando as medidas e seu impacto comercial, e que reserva todos seus direitos na OMC.
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Lições de 29Eliana Cardoso
05/02/2009
Passei férias no Marrocos onde, em Volubilis, percorri a via marginada pelas ruínas da antiga cidade romana, do portão de entrada ao arco do triunfo. Pensei na caminhada de Cecília Meireles pela Via Ápia e no poder de seus versos: "Ruínas não vejo, apenas: / - mas os mortos que aqui foram guardados, / com suas coragens e seus medos da vida e da morte. / Viver não vivo, apenas: / - mas de amor envolvo esta brisa e esta poeira, / eu também futura poeira noutra brisa".
Aperto o passo. Não quero que as ruínas romanas me levem da reflexão sobre a brevidade da vida à discussão da finitude dos impérios passados e presentes. Pois hoje não é dia de traçar falsos paralelos entre Roma e os EUA, mas apenas de cotejar o desastre econômico atual com aquele que vai completar 80 anos.
As comparações são inevitáveis. A crise atual, como a de 1929, começou nos EUA e de lá viajou para o resto do mundo. Ambas nasceram no setor financeiro e se espalharam para a economia real. Em ambas, várias instituições entraram em bancarrota, exigiram operações de salvamento e o crédito desapareceu. Por fim, pelo menos nos EUA, a recessão que começou em 2008 já é a mais grave desde a década de 30.
Se as semelhanças são evidentes, as diferenças também são importantes. Na década de 30, como Milton Friedman e Ana Schwartz ensinaram, em vez de fornecer liquidez ao sistema bancário, o Fed retirou recursos dos bancos e precipitou a falência de muitos deles. Durante os últimos seis meses, ao contrário, o Fed tem provido o sistema financeiro de enormes quantidades de recursos. Outros bancos centrais têm feito o mesmo.
Na década de 30, a economia brasileira recuperou-se com mais rapidez do que a americana. A chave para entender o que então se passou está na política de sustentação do preço do café que, ao manter o nível de renda dos cafeicultores, permitiu a expansão do setor manufatureiro. Durante a década de 20, o governo sustentara artificialmente o preço do café ao comprar parte da produção com empréstimos externos. A crise de 29 secou a fonte de financiamento externo e forçou tanto o governo central quanto o do Estado de São Paulo a interromper aquele programa. Entre 1928 e 1930, o preço do café despencou quase 40% e acarretou a queda da receita das exportações e do PIB. Em 1931, o Conselho Nacional do Café começou a comprar e destruir estoques.
De 1931 a 32, as compras do governo representaram 30% das exportações, com 65% do financiamento advindo de impostos sobre as mesmas e 35% de créditos do Banco do Brasil e do Tesouro Nacional. Entre 1933 e dezembro de 34, as participações das fontes de financiamento mudaram, com o crédito doméstico assumindo papel mais importante.
Estima-se que o PIB brasileiro tenha caído 2% em 1930 e outros 3% em 1931. Mas em 1932 ele já se encontrava em recuperação e em 1933 já superava o de 1929. A recessão, apesar de grave, durara apenas dois anos. Os reflexos sobre o orçamento do governo, entretanto, foram severos. À suspensão do serviço da dívida externa entre 1931 e 1932 seguiu-se um plano de reajuste em 1934 e Getúlio Vargas declarou a moratória em 1937.
À primeira vista, as diferenças entre o Brasil de ontem e de hoje chamam mais atenção do que as semelhanças. O café perdeu importância na nossa pauta de exportações. O parque industrial diversificou-se. E hoje a maior parte da dívida externa está nas mãos do setor privado.
Mas os paralelos também saltam aos olhos. As exportações de commodities ainda representam 50% das exportações brasileiras e seus preços caíram pela metade nos últimos seis meses. O crédito desapareceu. O governo parece disposto a programas fiscais para evitar contração do PIB. E a operação de salvamento de empresas ou bancos pode transferir a dívida externa de volta às mãos do setor público.
Estamos acostumados a olhar estímulos fiscais com desconfiança. Não bastasse a moratória de 1937, as políticas adotadas em resposta à crise do petróleo de 1979 e ao desaparecimento do crédito externo em 1982 representaram uma fuga dos custos de ajustamento e determinaram a moratória de 1987 e, em seguida, o Plano Collor.
Se o momento exige medidas anticíclicas, é melhor que elas tomem a forma de cortes da Selic. Essa resposta é preferível ao aumento de gastos do governo. E é melhor do que a política pouco transparente de estímulo ao crédito através dos bancos oficiais, pois o passado mostra que políticas parafiscais costumam criar esqueletos difíceis de enterrar. A queda da Selic pode abrir espaço orçamentário para cortes horizontais de impostos sobre a folha de salário. A vantagem dessa medida é que cortes de alíquotas são reversíveis, ao contrário da contratação de gastos.
Por último, outra marca da década de 30 foi o crescente protecionismo comercial, iniciado pelos americanos com a lei tarifária Smoot-Hawley. Também hoje, o mau exemplo vem dos EUA. Na semana passada, ao discurso anti-China do secretário do Tesouro somaram-se emendas ao pacote de estímulo econômico. Elas dão preferência a empresas americanas na contratação de obras, determinam que apenas o aço produzido no país seja utilizado e asseguram privilégio semelhante a aparelhos para hospitais nos programas financiados pelo plano.
Na década de 30, o protecionismo agravou a depressão, que desembocou em ideologias extremistas, aumento do nacionalismo e guerra. Mas os governos se esquecem da história na hora do desespero. Enquanto 44 países divulgavam um documento a favor do comércio em Davos, a União Europeia anunciava em Bruxelas um aumento de 85% nas tarifas de importação de produtos chineses para o setor automotivo.
No Brasil, em 28/1, o governo anunciou a exigência de licença prévia de importação para 17 setores e depois revogou a decisão. Quem anuncia medidas que o presidente reprova não deveria perder o cargo? Desgoverno e atraso do PAC nos deixarão a ver ruínas e poeira?
Eliana Cardoso é professora titular da EESP-FGV e escreve, quinzenalmente, às quintas-feiras






Opções para o adensamento da indústria nacional

David Kupfer - 22-07-09

Os dados referentes ao comércio exterior brasileiro no primeiro semestre de 2009, recém-divulgados pela Secex, estão acendendo um sinal de alerta sobre a capacidade de resposta da indústria brasileira ao novo cenário vigente no mercado internacional pós-crise. Embora, surpreendentemente, o saldo comercial do país esteja sustentando os níveis do ano passado, verifica-se uma acentuação da polarização no interior da balança comercial, na qual o comércio de produtos básicos é cada vez mais superavitário enquanto o de manufaturados é cada vez mais deficitário. Com efeito, em apenas seis meses, o déficit da balança comercial da indústria de transformação já atingiu US$ 6 bilhões, quase um bilhão a mais do que o verificado em igual período de 2008. Ao sugerir a consolidação de um padrão indesejado de especialização das exportações brasileiras em produtos baseados em recursos naturais que, ademais, já vinha se desenhando mesmo no período favorável pré-crise, esse resultado vem trazendo à tona antigas preocupações a respeito da incapacidade estrutural da economia brasileira em fazer face aos desafios trazidos pela maior integração do país aos mercados globais.
Durante os 50 anos que sucederam o início da II Guerra Mundial, o Brasil perseguiu um projeto de desenvolvimento econômico no qual o carro-chefe foi a construção da indústria nacional. Após longos anos de marchas e contra-marchas em busca de um modelo institucional que fornecesse o necessário suporte para um movimento firme de industrialização, o modelo de substituição de importações rendeu seus frutos, levando a um ritmo de expansão industrial sem precedentes até mesmo na história do planeta. É bem verdade que os últimos dez anos desse período, os anos 1980, já haviam sido de estagnação econômica e de relativa involução da estrutura industrial montada no período áureo do modelo, cujo esgotamento coincidiu com o final da década anterior. Isso porque a incapacidade de introduzir as mudanças institucionais necessárias levou a que se substituísse o regime de proteção pragmática que orientou a substituição de importações por um ultra-protecionismo indiscriminado que mostrou-se prejudicial ao prosseguimento da modernização da indústria nesses anos.
Diante da premência em se promover a reestruturação da indústria brasileira em resposta às profundas transformações ocorridas na economia mundial ao longo da década de 1980, venceu um projeto de abertura que enxergava um padrão de integração competitiva do Brasil apoiado na exportação de produtos baseados em recursos naturais e na importação de capitais e de tecnologia. Essa última viria incorporada em insumos ou equipamentos mais sofisticados originários do mercado internacional ou diretamente trazida pelo investimento direto externo. A abertura abrupta e atabalhoada promovida nesses anos produziu seus efeitos negativos rapidamente, levando a um processo de perda de densidade da indústria e, logo, a uma crise cambial de grandes proporções já no início de 1999. Vem desde então a percepção da essencialidade de uma política industrial voltada para o re-adensamento das cadeias produtivas da indústria nacional.
Uma visão abrangente do processo de perda de densidade ocorrido na indústria brasileira nos últimos anos exige observá-lo em três vertentes distintas, com implicações igualmente distintas para a definição de políticas industriais para o seu enfrentamento. Em primeiro lugar, a vertente mais visível desse processo é a que se manifesta no desaparecimento de elos de cadeias verticais de suprimento, basicamente devido a transformação seja de setores que antes operavam com algum grau de integração produtiva à montante em meros montadores, seja de setores que antes beneficiavam matérias-primas em meros exportadores desses produtos. Esse tipo de desadensamento vertical foi mais característico das cadeias produtivas da indústria eletrônica e, em intensidade menor, também da indústria química. A medida estatística desse tipo de perda de densidade industrial é dada diretamente pelos números elevados e crescentes das importações de componentes e insumos que vem acompanhando a evolução dessas indústrias nas últimas décadas.
Uma segunda vertente do processo, mais difícil de ser visualizada e quantificada, é aquela que pode ser chamada de perda de densidade horizontal. Nesse caso, o desadensamento decorre da opção adotada por empresas de se especializarem na produção de uma variedade menor de produtos, geralmente dedicando-se apenas à fabricação dos bens mais simples em termos de requisitos tecnológicos ou que exigem menor imobilização de capital. No Brasil, a perda de densidade do tipo horizontal foi típica da indústria mecânica, como revelam os números igualmente elevados e crescentes das importações de produtos finais realizados pelos segmentos de máquinas, material de transporte e outros.
Porém, o principal fator de perda de densidade industrial no Brasil contemporâneo é de natureza muito distinta desses já descritos, não podendo ser capturado pela geometria das relações intra ou intersetoriais nas cadeias produtivas: é uma questão relacionada à intensidade do conhecimento tecnológico incorporado na indústria e diz respeito, portanto, aos intangíveis, muitos deles pertencentes a esfera dos serviços, que são comandados pelas atividades industriais. Um correto diagnóstico dessa vertente do problema é o passo essencial que necessita ser dado para que se possa avançar com segurança no desenho de medidas de política industrial que possibilitem efetivamente reposicionar a indústria brasileira. Do contrário, o tema do adensamento da indústria continuará ganhando força na agenda da política industrial sem que resultados práticos significativos venham a ser conseguidos.
David Kupfer é professor do Instituto de Economia da UFRJ e coordenador do Grupo de Indústria e Competitividade (GIC-IE/UFRJ - www.ie.ufrj.br/gic - gic@ie.ufrj.br ). Escreve mensalmente às quartas-feiras.


Leite derramado
David Kupfer
04/02/2009
Desde março de 2001 o Brasil não sabia o que era déficit comercial. Janeiro de 2009 ficará marcado como o mês da surpreendente virada da balança comercial brasileira, expressa pelo resultado negativo de US$ 518 milhões registrado no período, uma variação impressionante quando contrastada com o superávit de quase US$ 1 bilhão auferido em janeiro de 2008. Relativamente a essa mesma base de comparação, tanto as exportações quanto as importações caíram, as primeiras, porém, com maior intensidade do que as segundas (22,8% e 12,6%), explicando esse mau desempenho. Já quando observadas em conjunto, a contração das exportações e das importações provocou um encolhimento de 18% da corrente de comércio brasileira em um intervalo de tempo de apenas um ano, outro número não menos impressionante.
Diante desse desempenho tão preocupante, o que se pode esperar para a balança comercial nos próximos meses? Essa é uma pergunta ainda muito difícil de ser respondida pois os efeitos da crise financeira estão longe de estarem totalmente estabelecidos. Possivelmente, mesmo não sendo ainda disponíveis os dados requeridos para embasar respostas muito precisas, os indícios são de que o déficit de janeiro tenderá a ser revertido, tornando-se um superávit moderado lá para meados do ano, garantindo assim um resultado final positivo para 2009. Isso porque ao longo dos próximos meses as exportações sazonais ligadas aos produtos agrícolas, especialmente a soja, começarão a ser escoadas enquanto as importações, que até o momento vêm seguindo uma trajetória de contração mais lenta, deverão convergir mais rapidamente para níveis mais consistentes com o desaquecimento em curso no mercado interno brasileiro e também com o novo patamar mais desvalorizado da taxa de câmbio.
Porém, quando o horizonte de análise se estende para períodos mais longos, as fontes de apreensão tornam-se mais difíceis de serem afastadas, em consequência do aprofundamento da dependência de commodities que marcou a trajetória das exportações brasileiras nos últimos anos - ou décadas. Evidências de que o perfil das exportações brasileiras caminhou na contramão do que agora é desejável podem ser facilmente obtidas pela análise da evolução recente da concentração das vendas ao exterior em termos dos diversos produtos comercializados. Enquanto em 2006, 50% das exportações totais foram originadas por 32 produtos da pauta de comércio, essa mesma parcela em 2008 foi proporcionada por apenas 24 produtos, quase todos eles produtos básicos ou semi-manufaturados. Quando se toma como referência apenas o segundo semestre de 2008, focando no período em que a retração dos mercados internacionais já estava deflagrada, esse tendência de concentração não somente não se modifica como até mesmo se acentua: nesses seis meses finais de 2008 apenas três produtos responderam por quase 20% das exportações acumuladas do período, enquanto o limite de 50% das exportações foi originado por 18 produtos (ante 26 produtos no segundo semestre de 2006).
Construída sob o olhar complacente dos formuladores da política econômica, reverter essa tendência e redefinir a inserção da indústria brasileira na economia mundial certamente não será uma tarefa fácil. Desde o episódio do "mini-crash" ocorrido na Bolsa de Xangai há exatos dois anos, que repercutiu com extrema virulência na Brasil - dentre todas as bolsas de valores, a Bovespa foi a que sofreu o maior contágio, sendo a recordista mundial na queda das cotações - era sabido que, quando a onda de desvalorização dos ativos financeiros começasse a se disseminar mundo afora, decretando a inevitável contração no ritmo de expansão da economia mundial, as grandes empresas no Brasil, especialmente as exportadoras de matérias-primas, iriam se ressentir pesadamente, devido primeiro, ao efeito direto sobre as suas receitas esperadas e, segundo ao efeito indireto, e com maior potencial negativo, que poderia decorrer de um eventual retorno a uma situação de maior vulnerabilidade externa da economia brasileira. Nos termos do debate travado à época, subsistia a preocupação com a prevalência de um regime competitivo que estava forçando a estrutura produtiva brasileira a um processo de especialização prematuro, com todas as consequências negativas a ele associado, entre elas, um aumento da fragilidade do sistema industrial nacional diante de possíveis turbulências na economia mundial. Em nome de uma pretensa saúde macroeconômica, que as autoridades econômicas orgulhosamente exibiam como demonstração do acerto das políticas adotadas, pouco ou nenhuma atenção era conferida a essas preocupações: trocou-se vulnerabilidade macroeconômica por fragilidade industrial.
Diferentemente da situação do mercado de trabalho, sobre o qual ninguém rigorosamente imaginava que a crise internacional iria chegar com a força com que se abateu de outubro para cá, a deterioração do desempenho comercial brasileiro já vinha sendo antecipada por muitos analistas menos comprometidos com a ortodoxia monetarista que parecia enfeitiçar o governo brasileiro. Os equívocos explicitados no episódio da exigência de licença prévia para as importações, decretada e anulada pelo governo no intervalo de alguns poucos dias, acende uma luz vermelha pois mostra que não há muito o que fazer em defesa da balança comercial no curto prazo que não a adoção de medidas sintomáticas. O retorno da pujança comercial brasileira dependerá de medidas de política eficazes no combate da crônica deficiência competitiva da indústria brasileira e da aguda penetração de importações que se enraizou no tecido industrial local nos tempos recentes de excessiva valorização cambial.
Sabe-se que não adianta chorar sobre o leite derramado. Embora esse conhecimento provavelmente não esteja impedindo que muitas lágrimas já estejam sendo vertidas, cabe agora à política econômica se conscientizar de que os sinais de retomada de um maior protecionismo no comércio internacional exigirá uma inflexão na política comercial brasileira, que terá que tornar-se mais ativa na promoção das exportações e mais presente na substituição competitiva de importações.
David Kupfer é professor do Instituto de Economia da UFRJ e coordenador do Grupo de Indústria e Competitividade (GIC-IE/UFRJ. Escreve mensalmente às quartas-feiras. www.ie.ufrj.br/gic E-mail: gic@ie.ufrj.br)



As virtudes esquecidas do livre comércio
Frank Trentmann
04/12/2008
Nicolas Sarkozy, o presidente francês "laissez-faire", declarou recentemente: "está acabado". Talvez, mas deveríamos realmente ficar satisfeitos se ele estiver certo? Caso o laissez-faire tenha chegado a seu fim, o que poderia substituí-lo no papel de base de uma sociedade global e aberta?
Agora, mais do que nunca, vale lembrar que a última grande crise financeira não apenas inspirou o "New Deal" nos Estados Unidos, como fez o mundo mergulhar em uma nova e sombria era de nacionalismo econômico e imperialismo. O livre comércio está longe de ser perfeito, mas as alternativas são piores. O protecionismo é ruim para a prosperidade, é ruim para a democracia e é ruim para a paz.
Uma nova onda de protecionismo é um verdadeiro perigo. Barack Obama, em apelo ao crescente sentimento de protecionismo entre os americanos, ameaçou durante sua campanha presidencial reescrever o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta, na sigla em inglês) de forma unilateral. Em julho, a Rodada Doha de negociações comerciais da Organização Mundial do Comércio (OMC) naufragou em parte porque os Estados Unidos se recusaram a reduzir seus subsídios agrícolas.
O mundo está em uma rampa escorregadia, inclinada em direção ao nacionalismo e exclusão. Se um governo pode intervir para ajudar bancos falidos, por que não proteger da mesma forma suas empresas ou agricultores que estão quebrando?
Precisamos de um novo acordo para o comércio. Há conversas generalizadas agora sobre um "Bretton Woods II" para reestruturar as finanças mundiais, promover sustentabilidade e oferecer aos países em desenvolvimento "auxílio para o comércio". Porém, pare ser efetivo, qualquer novo acordo de promoção do comércio precisa envolver mais do que um novo conjunto de instituições internacionais. Precisa de reformas democráticas de baixo para cima.
De fato, esta exigência tem raízes na história. Ficamos tão acostumados a pensar no livre comércio como um assunto de especialistas, destinado a economistas liberais ou negociadores de comércio exterior em ternos escuros, que nos esquecemos como o livre comércio era, há um século, uma crença central para muitos democratas, radicais, ativistas mulheres e, certamente, para o trabalho organizado.
Naqueles tempos, a Grã-Bretanha estava em uma posição não muito diferente da dos EUA hoje: uma superpotência em relativo declínio, deparando-se com novos concorrentes e uma reação adversa à globalização. No fim do século XIX, todas as potências ampliaram suas barreiras comerciais - exceto a Grã-Bretanha.
A posição britânica traz lições para os dias de hoje. A maioria dos economistas ressalta a superioridade do modelo de livre comércio e acusa os lobbies e grupos de interesse para explicar sua atual impopularidade. O presidente do Federal Reserve, Ben Bernanke, argumentou que a expansão comercial inevitavelmente cria alguns perdedores, cujos protestos distraem a atenção dos benefícios da globalização.
Isso é verdade, mas é apenas metade da história, pois ignora como, em momentos cruciais da humanidade, o livre comércio arregimentou o apoio dos muitos vencedores.
Há um século, durante uma crise anterior da globalização, a demanda por livre comércio na Grã-Bretanha inspirou um genuíno movimento de massas. Era uma causa desejada não apenas por banqueiros, mercadores ou pelo jovem John Maynard Keynes. Mobilizou milhões de pessoas. Para as mulheres, que continuavam com direitos civis cassados, o livre comércio era um tipo de substituto da cidadania: o Parlamento protegia seus interesses como consumidoras ao manter a porta aberta para as importações baratas. Para muitos democratas, era uma força pela paz e justiça social, minimizando o poder dos interesses especiais e ensinando aos cidadãos sobre justiça e entendimento internacional.
Não devemos idealizar esta era anterior do livre comércio. A pobreza não desapareceu. Muitos britânicos acreditavam em um "Império do Livre Comércio". Outros alimentavam o fogo do antagonismo anglo-germânico, caricaturando a Alemanha protecionista como uma sociedade de bárbaros sobrevivendo de salsichas de cavalo e carne de cachorro; Lloyd George, futuro primeiro-ministro, dizia a platéias ter mais medo das salsichas alemãs do que da Marinha alemã.
Um motivo para o livre comércio ter derrotado o protecionismo na Grã-Bretanha há um século foi o fato de seus defensores terem apelado para a emoção e identidade da população, não apenas a seus interesses racionais de riqueza e alimentos baratos. Liberais e radicais organizaram mostras itinerárias, pôsteres coloridos e atividades de entretenimento político. Nas cidades, cartazes nas vitrines das lojas ilustravam o custo das tarifas aos consumidores comuns. No campo, as pessoas assistiam à exibição de slides políticos até tarde da noite. Encontros em estâncias de férias na costa reuniam quase 1 milhão de pessoas em 1910. Quando foi a última vez em que você foi à praia e viu-se arrastado a um debate sobre tarifas?
A Primeira Guerra Mundial e a fragmentada década de 20 derrubaram qualquer crença ingênua no livre comércio puro. Assim como hoje, os consumidores descobriram que os mercados poderiam deixá-los indefesos, o que levou a pedidos em favor da regulamentação. Os internacionalistas aceitaram o simples fato de que o comércio, por si só, não possibilita a paz. A globalização econômica sobrepujou a política, criando novas tensões sobre o petróleo e outros recursos estratégicos. As instituições políticas precisaram equiparar-se.
Bretton Woods e o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT, na sigla em inglês) criaram uma nova ordem depois da Segunda Guerra Mundial. Em termos econômicos, tiveram sucesso considerável. As tarifas diminuíram, embora as barreiras não-tarifárias e acordos preferenciais estejam em ascensão. Porém, em termos de cultura democrática, o GATT também levou a uma maior separação do comércio em relação à política cotidiana. É por isso que o livre comércio foi deixado tão indefeso ante os protestos contra a globalização.
A boa notícia é que as pessoas não deixaram de importar-se com a ética do comércio. Ao contrário, se estenderam em outros movimentos como o "comércio justo" e "comércio com justiça". Para ser justo, a Organização Mundial do Comércio (OMC) sob Pascal Lamy tentou estender a mão a tais grupos. Ainda assim, há um longo caminho a seguir para reconectar um comércio mais livre com a cidadania e a solidariedade mundial. A história mostra que fazê-lo é tanto possível como necessário.
Frank Trentmann é professor de História no Birkbeck College, da University of London. © Project Syndicate/Europe´s World, 2008. http://www.project-syndicate.org/


Para enfrentar o medoDominique Strauss-Kahn
06/11/2008
Apesar de o aperto nos empréstimos interbancários ter começado a ser afrouxado pelo socorro aos sistemas financeiros em todos os países avançados, as quedas registradas pelos indicadores econômicos fizeram os mercados acionários despencar. As pressões sobre países de mercados emergentes, antes considerados por muitos observadores como "desacoplados" do resto do mundo, ficaram mais intensas, devido ao repatriamento de recursos externos e da venda de ativos.
Em vista do medo que se apodera de consumidores, empresas e países em todo o mundo, agora deixou-se de falar em recessão moderada em países avançados e passou-se a falar em grande depressão mundial. Instalou-se uma sensação de desânimo devido à percepção de que nada pode ser feito para evitar a depressão.
O que está acontecendo? As medidas tomadas três semanas atrás para dar sustentação ao sistema financeiro estavam simplesmente erradas? Absolutamente, não. O aprovisionamento de liqüidez, a recapitalização de bancos, seguros mais uniformes sobre depósitos em todos os países avançados - todas essas medidas foram corretas e necessárias. Mas elas foram apenas uma primeira parte do todo que precisa ser realizado.
Nos países avançados, a queda dos valores dos ativos e, de modo mais geral, o medo do futuro abalou a confiança de consumidores e empresas. O consumo está caindo e as empresas estão cortando investimentos. A crise financeira criou uma acentuada queda na demanda - algo que os economistas denominam "recessão keynesiana".
Para ajudar a revitalizar a confiança, não há alternativa a empregar ferramentas macroeconômicas para impulsionar a demanda e sustentar a produção. A política monetária pode ser usada em países onde os juros continuam elevados, mas sua eficácia em meio a um aperto de crédito provavelmente será limitada. A política fiscal precisa, portanto, desempenhar um papel central. Expansão fiscal é sempre arriscada, pois amplia o endividamento e aumenta os riscos futuros. Mas, tendo em vista a situação em que estamos, as vantagens extrapolam os custos em países onde há uma endividamento sustentável.
Países com mercados emergentes defrontam-se com um problema adicional. Não apenas precisam enfrentar as perspectivas de quedas nas exportações e na confiança, como também são as mais recentes vítimas de uma crise financeira que começou nos EUA, viajou para a Europa e agora cruzou suas fronteiras.
Bancos estrangeiros estão cortando crédito. Investidores estrangeiros estão repatriando seus recursos financeiros em escala inédita. Ironicamente, as medidas que estão sendo tomadas para solucionar a crise em países avançados estão tornando mais atraente trazer dinheiro de volta para casa, dificultando a vida dos países de mercados emergentes.
Para dar sustentação a seus sistemas financeiros e aquecer a demanda geral, os países de mercados emergentes precisam estar dispostos a tomar medidas similares às implementadas pelos países avançados. Mas a recente prosperidade de muitos desses países resultou de acesso ao capital mundial. Uma brusca interrupção nesse fluxos representa um severo impacto e cria problemas especiais que não podem ser solucionados por esses países sozinhos.
Por isso, os países avançados precisam mostrar-se dispostos a proporcionar o financiamento necessário, e a fazê-lo numa escala inédita. A alternativa é a perspectiva de inadimplência generalizada em face de suas dívidas externas, controles sobre o sistema bancário e protecionismo - uma conseqüência que constituiria um retrocesso nesses países e para a economia mundial como um todo por muitos anos à frente.
O Fundo Monetário Internacional (FMI) dispõe de recursos financeiros para alocar até US$ 250 bilhões. Pusemos em ação os procedimentos internos e as linhas de socorro que nos permitirão proporcionar os recursos rapidamente, com condições limitadas à reação essencial para enfrentar a crise em curso. Além disso, o Fundo está desenvolvendo uma nova linha de liqüidez para disponibilizar recursos imediatamente a mercados emergentes de vigoroso desempenho que estejam praticando políticas sensatas e tenham bons fundamentos.
Isso deverá dar confiança aos investidores. Mas em vista da escala dos fluxos de capital, também estou exortando governos e bancos centrais de países avançados a proporcionar financiamento paralelamente ao disponibilizado pelos programas do FMI de reação à crise. Também estou convicto da necessidade de encontrar maneiras de colocar em ação os recursos de países que dispõem de grandes reservas. O Fundo desempenhará sua parte, mas todas essas ações são necessárias para reforçar a credibilidade da reação mundial coordenada à crise.
Precisamos também pensar à frente - especialmente em relação aos países de baixa renda na África. Devido a sua limitada participação nos mercados financeiros internacionais, esses países permaneceram até agora relativamente abrigados da turbulência. Mas é uma calma incerta que provavelmente não perdurará.
Muitos países de baixa renda sofrerão o impacto da queda dos preços das commodities. Outros, entre eles os que estavam tornando-se novos mercados emergentes, poderão ver secar seu acesso a capital estrangeiro. Também eles necessitarão ajuda da comunidade internacional. A concessão de empréstimos pelo FMI e por bancos de desenvolvimento mundial, e a manutenção de ajuda de doadores nos níveis atuais, serão essenciais para que evitemos novas tragédias humanas.
A dinâmica do medo é potencialmente catastrófica, mas essa dinâmica pode ser rompida. Quaisquer que sejam os problemas no sistema financeiro, as enormes melhorias, ao longo dos anos, em tecnologia, produtividade e progresso social - os verdadeiros fundamentos - são uma genuína prova do poder da globalização como uma força benigna. Pode ser tarde demais para evitar uma recessão nos países avançados e um desaquecimento da economia em países emergentes e de baixa renda. Mas não é tarde demais para evitar uma depressão mundial.
Dominique Strauss-Kahn é diretor-gerente do FMI. © Project Syndicate/Europe´s World, 2008. http://www.project-syndicate.org/



A crise e os neomercantilistas
Naércio Menezes Filho20/02/2009
O rápido processo de contágio da economia brasileira pela crise internacional que se originou nos Estados Unidos permitiu que enxergássemos com maior clareza como atuam os grupos de pressão na sociedade brasileira e como setores do governo e da sociedade veem o comércio internacional. Como sabemos, assim que os primeiros dados da balança comercial de janeiro foram divulgados, mostrando números negativos, o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC) estabeleceu a exigência de licenças para importação de vários produtos, alegando a necessidade de monitoração dos dados da balança. Felizmente, esta medida foi revogada pelo presidente Lula, que rapidamente verificou seu absurdo, mas os erros de concepção e implementação foram tantos, e tão grandes, que vale a pena discutir o contexto em que decisões como esta são tomadas.
Parece que uma parcela da equipe econômica do governo se rendeu às praticas do livre mercado, mas ainda não se convenceu dos seus reais benefícios. Em termos do comércio internacional, por exemplo, estes setores ainda têm uma visão mercantilista das coisas. O mercantilismo é o nome dado a um conjunto de políticas econômicas predominantes na Idade Moderna na Europa, entre os séculos XV e XVIII, que preconizava o desenvolvimento econômico por meio do enriquecimento das nações, graças fundamentalmente ao comércio exterior. O governo tem papel primordial nesta visão do mundo e deve adotar políticas protecionistas, fortalecer o mercado interno, estimular práticas monopolistas, estabelecer barreiras alfandegárias para diminuir as importações e definir medidas de apoio à exportação. A ideia era obter uma balança comercial favorável, ou seja, exportar mais do que importar, a qualquer custo, para que a entrada de ouro e prata fosse superior à saída. O excedente comercial estava acima de tudo.
Aos poucos, as ideias mercantilistas foram caindo em desuso, pois as pessoas começaram a perceber que elas não faziam muito sentido, pois mais importante que o acumular ouro e prata por meio de excedentes comerciais era aumentar o bem-estar das pessoas que vivem nos países. Logo depois surgiu a teoria das vantagens comparativas, que diz que o comércio internacional não é um jogo de soma zero, onde os ganhos de um país equivalem às perdas do outro. Na verdade, todos podem se beneficiar com o comércio internacional, na medida em que ele permite que os países se especializem na produção e exportação das mercadorias que conseguem produzir mais eficientemente. Ou seja, se o Brasil for mais produtivo na produção de soja do que na produção de computadores, e nos Estados Unidos ocorrer o contrário, seria mais interessante que o Brasil utilizasse todos os seus recursos para produzir soja e utilizasse o dinheiro obtido com a exportação de soja para comprar computadores dos EUA. Com a abertura comercial, as pessoas que trabalhavam fabricando computadores ineficientes passariam a trabalhar na produção de soja. Desta forma, o comércio internacional faz com que os países fiquem mais ricos e que as pessoas possam consumir produtos mais baratos do mundo todo.
A impressão que se tem é que vários segmentos da sociedade brasileira, incluindo o governo, gostariam que o Brasil tivesse saldo comercial positivo em todos os setores da economia. Essas pessoas ficam muito preocupadas quando o valor das importações supera o das exportações em algum setor, achando que deve haver algo errado com esse setor. Esquecem que o Brasil nunca conseguirá produzir eficientemente todas as mercadorias em todos os setores. Isto nos remeteria de volta aos anos 70 e 80, quando não tínhamos acesso a quase nenhuma mercadoria importada e pagávamos caro por produtos nacionais ultrapassados.
Outro aspecto muito interessante nesse processo é a atuação dos grupos de pressão (lobbies). No próprio dia do anúncio das licenças, representantes da Fiesp e do setor automobilístico negociavam diretamente com o MDIC os setores que ficariam isentos das licenças e que prazos seriam mais apropriados para a nova política. Os representantes empresariais anunciavam aos quatro cantos que, devido à crise internacional e à falta de mercados nos países desenvolvidos, a China iria tentar obter escoamento dos seus produtos a qualquer custo no Brasil, o que destruiria empregos locais e acabaria com nosso saldo comercial. A imagem propagada era a de que os chineses seriam os nossos grandes inimigos, esperando qualquer oportunidade para acabar com as nossas empresas e destruir empregos. Claro que isto não tinha qualquer apoio nos fatos. Como foi visto logo em seguida, as importações de produtos chineses pelos brasileiros diminuíram com relação ao passado recente, ao invés de aumentar. O que não era de se surpreender, dado que a moeda brasileira se desvalorizou em cerca de 40% nos últimos seis meses, o que deixou os produtos chineses bem mais caros no Brasil.
Na verdade, um livro lançado recentemente por economistas do Banco Mundial discute os impactos do crescimento da China e da Índia sobre as economias latino-americanas ("China's and India's Challenge to Latin America: Opportunity or Threat?"). O livro mostra, por meio de um conjunto de ensaios produzidos com técnicas estatísticas sofisticadas, que, longe de uma ameaça, o crescimento desses dois países tem produzido oportunidades imensas para as economias latino-americanas. Segundo o livro, não há evidências de que as exportações chinesas e indianas substituíram as exportações dos países latino-americanos e há fortes indícios de que a maior disponibilidade de insumos mais baratos produzidos e exportados por esses países tem beneficiado sobremaneira o processo produtivo de países como o Brasil.
Em resumo, não devemos estranhar que a Fiesp e outros grupos de pressão empresariais defendam seus interesses corporativos, afinal este é o seu papel. O que é de se estranhar é que o governo não enxergue que esses interesses nem sempre coincidem com os da sociedade brasileira e que ceda tão facilmente a estes grupos de pressão. Precisamos resolver isto antes que voltemos aos tempos mercantilistas.
Naércio Menezes Filho é professor titular e coordenador do Centro de Políticas Públicas do Ibmec São Paulo e professor da FEA-USP, escreve mensalmente às sextas-feiras.



Recessão e protecionismo: as lições de erros do passado
Marcelo Piancastelli05/03/2009
Numa viagem de estudos aos Estados Unidos como estudante de economia, a convite do Departamento de Estado, visitei Pittsburgh, na Pensilvânia, região de alta concentração da indústria siderúrgica americana. Diversas vezes, em diferentes reuniões, ouvi lamúrias contra a importação do aço brasileiro. Uma, em particular, ficou gravada até hoje. Jantando na casa de um operário da US Steel, eu o ouvi reclamar, durante todo o tempo, da situação da siderurgia americana e, em especial, da situação de colegas desempregados por conta das importações de aço brasileiro.
Já se passaram algumas décadas. A indústria siderúrgica americana, desde então, fez progressos, mas não se tornou competitiva mundialmente. Em se tratando de Estados Unidos, proponente líder do livre comércio, torna-se difícil alegar falta de talentos, de tecnologia, de capital e de mercado, ou culpar uma legislação trabalhista ultrapassada. Mas, da mesma forma, recrudescem todas aquelas reclamações protecionistas típicas de setores que não conseguem se tornar competitivos.
Eis que, no pacote de medidas contra a recessão proposto ao Congresso pela atual administração do presidente Obama, apareceu um ardiloso artigo coibindo importações de aço que traz à tona o mesmo velho e conhecido lema do protecionismo: salvaguardar empregos em indústrias sem condições de competir no mercado mundial. Em épocas de recessão há sempre esta tentação. As discussões das medidas propostas pelo governo americano no Senado se arrastaram mas, finalmente, acertou-se que apenas aquelas importações resguardadas por acordos internacionais estarão a salvo das novas medidas protecionistas. Ou seja, prevaleceu o protecionismo.
Aqui no Brasil, da mesma maneira, houve também tentativa semelhante. Por meio da conhecida "licença prévia de importação", tentou-se implantar conhecidos e velhos controles não-tarifários sobre as importações. Iniciativa, felizmente, abortada a tempo diante da forte reação gerada.
A iniciativa americana atual, por sua vez, se assemelha mais àquelas velhas ideias e sequer se aproximam das "novas ideias de economistas mortos"! Isto nos remete a rever lições do passado. As lições da crise de 1929 fazem parte, hoje, de nosso dia-a-dia. Sabe-se que o protecionismo americano, juntamente com outros equívocos na política monetária, apenas prolongaram a recessão, que durou 10 anos e só terminou por conta do início da Segunda Guerra Mundial.
Algumas medidas contra a recessão que se tenta implantar agora, em 2009, são semelhantes àquelas que foram adotadas há quase 80 anos. O presidente Hoover ordenou aos governadores que expandissem os gastos públicos até onde possível. Os gastos públicos, em abril de 1930, estavam em nível mais elevado dos cinco anos anteriores.
O presidente Hoover elevou os preços dos produtos agrícolas como um estímulo ao aumento da produção, levando a uma superprodução.
Finalmente, em junho de 1930, chegou-se ao protecionismo. Um senador de Oregon, Willis Hawley, e outro de Utah, Reed Smoot, apresentaram um projeto de lei, que acabou aprovado e se tornou conhecido como Lei Smoot-Hawley. Tal lei impôs as mais altas tarifas da história americana.
Numa tentativa de amainar as reações contrárias, o presidente Hoover determinou que a aplicação da lei fosse conduzida por um comitê suprapartidário, com representação igualitária entre republicanos e democratas, cujo encargo seria flexibilizar as tarifas quando conveniente. Enquanto isso, as perspectivas da economia americana se deterioravam. O desemprego passou de 3% no outono de 1929 para 9% ao início do ano seguinte.
Em maio de 1930, 1.208 economistas, Irving Fisher entre eles, assinaram uma carta aberta ao presidente alertando-o sobre a necessidade de vetar tal legislação protecionista.
Os termos da carta aberta foram claros: "Nós estamos convencidos de que o aumento das restrições aduaneiras serão um erro. Elas operam em geral para aumentar os preços que os consumidores domésticos terão que pagar. Ao se aumentar os preços, induzirão custos de produção mais elevados e assim, vão compelir os consumidores a subsidiar a perda e a ineficiência na indústria. Ao mesmo tempo, tais restrições forçariam o consumidor a pagar por maiores lucros das firmas estabelecidas. Poucas pessoas poderiam ganhar com tais mudanças".
Os economistas assinantes da carta aberta previam: "Muitos países nos vão cobrar em espécie". Com relação à redução de desemprego, os economistas advertiram os republicanos, membros do Congresso que propunham tal lei protecionista, que "não se pode aumentar o emprego restringindo o comércio".
Os produtores americanos de algodão, carne de porco, gordura animal e trigo passaram a sofrer consequências do protecionismo com queda de suas exportações.
O jornal parisiense "Le Quotidien" publicou um editorial intitulado "Pode Mr. Hoover limitar a catástrofe que os protecionistas americanos estão preparando?". O primeiro-ministro francês à época, Aristide Briand, sugeriu a formação de um "mercado comum europeu" para fazer face à iniciativa americana.
Hoover recebeu alertas da Universidade de Stanford, sua "alma mater", e 106 telegramas de executivos da General Motors em todo o mundo o advertiram que o protecionismo isolaria os Estados Unidos e aprofundaria a recessão.
Apesar de todas as advertências, o Congresso americano deu a Hoover o que ele queria. Hoover promulgou a lei em junho de 1930, assinando-a com seis penas de ouro, em homenagem aos seis líderes republicanos que se empenharam em aprová-la.
Já se sabe o final da história: a economia americana padeceu de uma recessão mais longa que o necessário - durou mais de 10 anos e só terminou quando a economia foi alavancada pelo início da Segunda Guerra Mundial.
O protecionismo imposto pela Lei Smoot-Hawley provocou retaliações protecionistas por um grande número de países em todo o mundo. O protecionismo privou os EUA de mercados antes conquistados e aprofundou a recessão. A França e a Itália impuseram tarifas para os automóveis americanos, Austrália e Índia fixaram novas tarifas para produtos americanos. O Canadá elevou suas tarifas três vezes e atingiu, de início, 125 produtos americanos. A Suíça, desgostosa com as tarifas sobre relógios, boicotou importações americanas.
Outras consequências indiretas, inclusive sobre os pagamentos dos débitos de outros países junto ao governo americano, exigirão um espaço muito maior que o disponível no momento para serem comentadas
Marcelo Piancastelli é economista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).



China e América Latina além da crise
Javier Santiso05/03/2009
As perspectivas macroeconômicas para a América Latina obscureceram-se com a entrada de 2009. Alguns bancos de investimento, como o Deutsche Bank, agora projetam crescimento inferior a 1,8% para este ano, em linha com organizações internacionais, como a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal). Outros, entre os quais o JPMorgan, atrevem-se a prever expansão abaixo de 1% do PIB da região em 2009 e recessões em países como Argentina e México, com retrações de 1% e 0,6%, respectivamente.
Quaisquer que sejam os prognósticos, está claro que a bonança macroeconômica dos últimos anos acabou. Nem todos, contudo, compartem a mesma sorte em 2009: embora muitos possam crescer a passo de tartaruga, como Brasil e Colômbia (2% e 2,5%, respectivamente, segundo o JP Morgan), outros continuarão nas alturas, com taxas de expansão ainda elevadas, como o Peru (5,3%). Da mesma forma, nem todos os setores serão afetados por igual e, sem dúvida, a região conservará um importante potencial, em particular para operadores em busca de mercados amplos: as economias latino-americanas com renda per capita superior aos US$ 10 mil, em Paridade do Poder de Compra (considerado como limite para o desenvolvimento da classe média), agrupam quase 400 milhões de pessoas, 75% da população da região.
Neste ano, uma das incógnitas para a região será a Ásia, particularmente a China. Para alguns países da região, como o Chile, por exemplo, a Ásia já é a principal região de destino de suas exportações (35% das exportações chilenas dirigem-se para a Ásia, mais do que para a América do Norte e Europa). No Peru, a porcentagem é de 19% e outros países, como o Brasil e Argentina, também olham cada vez mais para o Pacífico. Desde 1995, o intercâmbio comercial entre América Latina e Caribe com a China multiplicou-se por 13, de US$ 8,4 bilhões para US$ 100 bilhões em 2007. No ano passado, a China transformou-se no segundo maior parceiro comercial da região, logo atrás dos EUA. Como se fosse pouco, os preços das matérias-primas, que representam mais de 60% do total das exportações latino americanas, dependem em parte da demanda asiática, com a China devorando petróleo, cobre e soja para sustentar seus índices de crescimento e fornecer alimentos à população.
A China, em 2008, 30 anos após o processo de abertura iniciado por Deng Xiaoping, converteu-se na terceira maior economia do mundo. Desde o fim do ano passado, a taxa de expansão perdeu força e as autoridades anunciaram um plano maciço de estímulo fiscal (US$ 600 bilhões, cerca de 14% do PIB). Para a América Latina, todos acontecimentos no distante Oriente serão igualmente cruciais. Tudo aponta para uma rápida desaceleração na China, não apenas pela cifra agregada, mas também pelas contrações setoriais que estamos presenciando. A demanda por aço, o consumo elétrico, as vendas de carros e a produção industrial apontam para uma baixa. As medidas adotadas, contudo, também corroboram a determinação das autoridades de manter o crescimento acima de 7% a 8%, considerado por muitos analistas como chave para inibir distúrbios sociais e descontrole do desemprego.
Os desafios chineses, entretanto, vão mais além da conjuntura. Como nenhum outro país emergente, a China depara-se a médio prazo com o repto de não apenas uma, mas de três transições demográficas de grande calado. Não apenas precisa enfrentar uma urbanização acelerada de sua população, mas também o envelhecimento acelerado (deste ponto de vista sua "idade de ouro" demográfica já passou, ao contrário da Índia) e a um descompasso de gênero sinalizando que o equivalente à população da Espanha não encontrará parceira no futuro. Em breve, haverá entre 40 milhões e 60 milhões de homens a mais do que mulheres, como consequência da política de natalidade levada a cabo nas décadas anteriores.
Outro desafio, mais estrutural, enfrentado pela economia da China são as tensões e tentações protecionistas que irão conquistar espaço no Ocidente à medida que a recessão se aprofunde em 2009. Como assinalado no magnífico ensaio do economista Yasheng Huang, "Capitalism with Chinese characteristics: entrepreneurship and the State" ("Capitalismo com Características Chinesas: Empreendedorismo e o Estado"), o capitalismo chinês padece de um pecado original, que reside em seu controle estatal. Este cordão umbilical, embora constitua uma de suas forças, também expõe estas mesmas empresas a reações adversas no momento de entrar em outros mercados, especialmente via aquisições ou aumento das exportações. No futuro, é de se esperar que este desafio protecionista, longe de atenuar-se, fique ainda mais acentuado. É algo que as empresas sul-coreanas e japonesas, que no passado apostaram em grandes investimentos na China, estão antecipando, como é corroborado por seus recentes desdobramentos industriais e avanço em outros mercados asiáticos, como Vietnã e Indonésia, o que é uma forma de diversificar seus riscos e não se expor demasiado a um breque às importações chinesas por parte dos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Os riscos aqui assinalados, a curto e longo prazo, não têm motivos para materializar-se no futuro. O que, sim, é certo, tanto para o bem como para o mal, é que a América Latina terá que considerar o que ocorrer ou deixar de ocorrer na Ásia, em particular na China. Os vínculos entre as duas regiões continuarão cada vez mais próximos. Isto é algo que fica claro para ambas as regiões, como simbolizaram, no fim de 2008, a entrada da China no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), como país doador; a celebração da 2ª Cúpula Empresarial China-América Latina, na cidade chinesa de Harbin, província de Heilongjiang; e a presença, alguns meses antes, em Lima, do primeiro-ministro da China na cúpula do Fórum de Cooperação Econômica da Ásia-Pacífico (Apec, em inglês). Nesta ocasião, o governo peruano assinou acordo de livre comércio com o colosso asiático, depois de tê-lo feito com o Chile em 2005. Atualmente, a Costa Rica também negocia acordo similar, e é de se esperar que mais países façam o mesmo.
A crise atual, desencadeada nos países da OCDE, apenas confirma a necessidade de olhar em direção a novos rumos, algo que América Latina e China vêm fazendo, de maneira acertada, desde o princípio do milênio.
Javier Santiso é diretor e economista-chefe do Centro de Desenvolvimento da OCDE, instituição que publica o Panorama Econômico Latino-Americano da OCDE.


Balança, mas não cai?
Eliana Cardoso05/03/2009
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GRAFICOS
No primeiro, de 1971 a 1980, o crédito externo permitiu ao governo fugir do ajuste necessário a dois choques do petróleo. A consequência? Crise da dívida e forte recessão entre 1981 e 1983. No segundo, de 1995 a 1998, a liquidez externa permitiu o uso da âncora cambial para acabar com a inflação. Sem ajuste fiscal, o resultado foi o colapso do real em 1999.
A partir de 2001, o saldo comercial subiu e, em termos de sua participação no PIB, teve um pico entre 2004 e 2005. Embora comece a cair a partir de 2006, ainda se manteve positivo até 2008. No começo da subida, a desvalorização do real (de 1998 até 2003) teve um impacto positivo sobre a exportação de manufaturados, como mostra a figura acima. E a partir de 2004, as exportações totais se beneficiaram de termos de troca favoráveis e da forte demanda externa.
Esse quadro mudou. O saldo comercial despencou em 2008, porque os preços de nossas exportações caíram, a demanda global se reduziu e as economias latino-americanas, que absorvem cerca de 40% das exportações de manufaturados, também estão entrando em recessão. Nem mesmo a diversificação das exportações brasileiras foi suficiente para nos proteger. E veja que as exportações brasileiras são bem diversificadas. O valor do Índice de Concentração das Exportações, calculado pela Organização Mundial do Comércio (OMC), é 9,1 - típico dos países ricos da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Mas se a demanda despenca no mundo inteiro, não há para onde correr.
Não há muito que o governo possa fazer (de forma direta) para mudar esse resultado. O Brasil já é mais protecionista do que a média dos países latino-americanos. De acordo com o Índice de Restrição das Tarifas Comerciais (TTRI), calculado pela OMC ("World Tariff Profiles 2008"), numa escada de 125 degraus o Brasil ocupa o degrau 92. Embora sua tarifa máxima de 35% seja relativamente baixa, a tarifa média de 12% é mais alta do que a média tanto regional quanto de outros países de mesmo nível de renda.
O Brasil aplica medidas não-tarifárias (cotas, licenças, salvaguardas) a 46% das linhas tarifárias. Nosso Índice de Restrição ao Comércio Incluindo Medidas Não-Tarifárias (Otri) é 20%, em contraste com a média de 12% na América Latina e nos países de renda média alta, o que sugere um regime bem mais protecionista no Brasil do que no resto da região. A comparação foi feita antes das medidas protecionistas adotadas pela Argentina em 2008 e 2009, mas elas não devem mudar a média regional de forma significativa.
Por outro lado, os argumentos que defendem intervenções a favor das exportações são tão problemáticos quanto os a favor do protecionismo. Subsídios dão origem à retaliação e resultam em atividades de lobby e corrupção. É melhor eliminar tarifas de importação do que tentar compensá-las com subsídios às exportações.
Restam ao governo duas importantes frentes de atuação. A primeira é melhorar o ambiente de negócios. Nossa classificação (na posição 122 entre 178 posições) de acordo com o índice "Doing Business" do Banco Mundial é ruim, porque é difícil abrir e fechar uma empresa no Brasil, assim como é difícil fazer valer um contrato.
A outra frente depende das negociações internacionais. O Brasil ainda enfrenta barreiras externas importantes. Nossas exportações agrícolas se deparam com tarifas médias de 12,8% em contraste com a média para os países da América Latina e do Caribe (6,2%) e para os países de renda média alta (8,1%). Para piorar, saiu o primeiro relatório anual do representante comercial dos EUA (USTR) do governo Obama. Ele subordina a conclusão da Rodada Doha a objetivos sociais e ambientais. Traz, portanto, risco de protecionismo disfarçado, o que dificultaria ainda mais a posição comercial brasileira.
Por fim, vale lembrar que os déficits comerciais nos períodos 1971-80 e 1995-98 só foram possíveis porque se podiam financiar externamente. Como a liquidez externa anda escassa, o déficit em conta corrente em 2009 exigirá o uso das reservas internacionais. Teremos novos riscos mais adiante? Os primeiros anos do governo Dutra (1946-47) mostram que as reservas podem se esgotar com rapidez. O governo Lula terá de se perguntar que combinação de política fiscal e monetária permitiria ritmo de crescimento consistente com déficits pequenos, para não comprometer a estabilidade futura.
Eliana Cardoso é professora titular da EESP-FGV e escreve, quinzenalmente, às quintas-feiras
Home page http://www.%20elianacardoso.com/



Globalisation
Turning their backs on the world
Feb 19th 2009
From The Economist print edition
The integration of the world economy is in retreat on almost every front




A crise, o comércio e a culpa dos emergentes
Maria Clara do Prado12/03/2009
Há pouco mais de um ano, a moda dos fundos de riqueza soberana espalhava-se pelos países em desenvolvimento. Apanhados de repente em situação de extraordinária fartura, os governos das economias "nouveaux riches" tiveram de enfrentar uma realidade anômala: o boom dos preços das commodities fizeram com que nadassem em recursos financeiros, mas não dispunham de ativos próprios para aplicar toda a "riqueza" acumulada.
Os fundos soberanos surgiram então como uma espécie de panacéia. Os recursos reunidos ali seriam aplicados em oportunidades de investimento mundo afora, e não era pouco: há dois anos projetava-se que o total naqueles fundos atingiria cerca de US$ 10 trilhões em 2018. Até o Brasil, com reservas internacionais modestas face a outros emergentes, cogitou a criação do seu fundo soberano sem que nunca se tenha conseguido saber muito bem como isso seria operado.
São águas passadas. A fonte que alimentava aqueles fundos secou com a drástica queda nos preços das commodities em geral. A crise do setor bancário-financeiro dos Estados Unidos tem sido suficientemente grande e persistente para afetar o comércio internacional.
O processo é fácil de entender. Simplesmente a crise levou consigo uma multiplicidade de ativos financeiros, gerados a partir da liquidez barata no mundo desenvolvido, realimentados em boa parte pelos recursos gerados nas economias emergentes. Tudo se sustentava em mercado superalavancado, onde as próprias commodities eram negociadas como ativos financeiros. Os preços de uns reforçavam os preços de outros.
Com a desconstrução do processo, o mundo todo empobreceu e os países menos ricos, como o Brasil, voltaram à sua real dimensão. É verdade que entre os emergentes a situação brasileira não é das piores. Tem a seu favor - por incrível que pareça - a alta taxa de juro de curto prazo. Como bem indicou a economista Teresa Ter-Minassian, do FMI, em palestra proferida em São Paulo na terça-feira (ver matéria na página C1 da edição de ontem do Valor) o Brasil tem a seu favor a política monetária para enfrentar a crise.
Há de fato bastante gordura para cortar, mas isso tem limite. É dado pelo risco de se acentuar a saída de capitais ou a depreciação do câmbio, como ela notou ao comentar a falta de certeza na efetividade das políticas.
Na mesma palestra, Ter-Minassian apresentou o mais completo e profundo panorama da situação mundial com o qual foi brindada uma audiência brasileira desde a eclosão da crise. O gráfico ao lado dá uma ideia da deterioração das linhas de financiamento para o comércio externo, sem que nenhum país tenha sido poupado. O contágio, iniciado com a crise de crédito americano, ganha agora um reforço adicional com as projeções cada vez mais pessimistas para o Produto Interno Bruto (PIB).
Se os Estados Unidos não forem às compras - teme-se que o dinheiro liberado por Obama tome o rumo da poupança e não do consumo - e se a Europa continuar mergulhada na apatia (com problemas crescentes nas economistas do Leste), o comércio do mundo continuará atravancado.
Os economistas Ricardo Caballero, Emmanuel Farhi e Pierre-Olivier Gourinchas publicaram no NBER, em dezembro, o trabalho "Financial Crash, Commodity Prices and Global Imbalances" ("Crash Financeiro, Preços de Commodities e Desequilíbrios Globais") - http://www.nber.org/papers/w14521.pdf-, no qual tentam explicar o comportamento dos preços das commodities (usam o petróleo como referência). Sua tese é de que os preços dos produtos agrícolas e dos minerais são extremamente sensíveis ao valor da riqueza financeira nos Estados Unidos. Uma redução nesta, equivalente a 10% do PIB, desencadearia significativo declínio de 58% nos preços das commodities.
No modelo que desenvolveram, aquilo significa um ajuste na balança comercial americana de cerca de 2,2% do PIB. Os efeitos sobre o comércio tenderiam a piorar com a "persistência da crise financeira e seus vários multiplicadores que severamente afetam as perspectivas de crescimento", dizem.
Mas a reversão terá de ocorrer um dia. Quando o momento chegar, o trio de economistas prevê nova rodada de aumentos de preços, com a volta da situação de crônica escassez de ativos. "O ciclo vai começar de novo", dizem, avaliando que a regulação (financeira) não tem condições de enfrentar as forças de mercado.
Para eles, o problema concreto é macroeconômico e não vai desaparecer até que a habilidade da economia mundial em gerar sólidas reservas de valor esteja em linha com o crescimento potencial da renda. Para eles, isso depende largamente da China e de outros países emergentes. Estes precisam criar ativos próprios confiáveis para absorverem um eventual novo processo de expansão da riqueza. Sem isso, acreditam que haveria fortes possibilidades do mundo voltar a vivenciar o recente processo de incremento nos preços dos ativos com forte componente especulativo. Mas isso, claro, é algo por enquanto inimaginável.
Maria Clara R. M. do Prado, jornalista, é sócia diretora da Cin - Comunicação Inteligente e autora do livro "A Real História do Real". Escreve quinzenalmente, às quintas-feiras. E-mail: mclaraprado@ig.com.br




Economia sofre um duro golpe com a crise externa
Editorial12/03/2009
O Brasil caminhava para sua maior taxa de crescimento econômico desde o Plano Cruzado, impulsionado por um período extraordinário de expansão da economia mundial. Quando a crise global, a maior desde a Grande Depressão, jogou o crédito e o comércio internacionais no chão, era apenas uma questão de tempo até que o Brasil fosse duramente afetado. A queda de 3,6% do Produto Interno Bruto no último trimestre de 2008 mostra a sincronização evidente revelada tanto no ciclo de prosperidade quanto no de baixa global, que arrasa economias em todos os cantos do planeta, em especial a dos países desenvolvidos. Apesar de sua virulência, o Brasil tem condições de minimizar a retração, se dosar bem suas políticas fiscal e monetária.
Era certo que as turbulências atingiriam o Brasil, mas não era nada óbvio quando isso ocorreria e com que intensidade. Até setembro, o mundo era uma coisa, a partir daí tornou-se outra, muito pior. O governo brasileiro apostou na 'marolinha' quando um bom punhado de economistas competentes acalentava a esperança de que os países emergentes, entre os quais se incluía o Brasil, pudessem se descolar da crise global e impedir que o mundo mergulhasse na recessão. Infelizmente, erraram.
Essa é uma crise diferente, o que desorientou as melhores bússolas e continua desorientando. Como a Grande Depressão, seus efeitos foram o corte de crédito, dos fluxos internacionais de capital e do comércio de bens e mercadorias. Ela partiu da derrocada dos principais bancos globais, o que lhe confere um grau de destrutividade poucas vezes visto. E, ainda que os índices de recuo dos PIBs sejam impressionantes, não contam toda a história. Pode-se anualizar o recuo do quarto trimestre do PIB brasileiro ou compará-lo com o declínio do PIB americano, mais suave, e nem assim economistas de bom senso diriam que o Brasil está pior neste filme que os EUA ou a Europa.
Diferentemente das crises que sofreu o Brasil nos últimos 30 anos, não houve o replay das condições que motivaram oito planos econômicos. As contas externas estão razoavelmente em ordem, não à beira da moratória, como em 1986 ou 1999. A inflação, o mais agudo sinal de descontrole, onipresente no passado, está em queda. O desemprego não cresceu antes, como indicador antecedente de condições mais adversas, mas apenas quando a economia desabou - evoluiu rápida e fortemente, a partir de novembro. Vindo pelo canal do crédito e do comércio externo, ela se instalou de forma pouco visível e seu impacto foi maior "atrás" das linhas da produção - no investimento, nos empréstimos, que minguaram e se tornaram mais caros, e nas exportações, que estão em queda livre. Em três meses, a economia brasileira virou pelo avesso.
Agora, o país crescerá perto de zero ou terá uma suave recessão, se a economia global se mantiver na situação lamentável em que está, ou não piorar mais ainda. Nesta situação, o governo deve agir mais intensamente para reduzir os efeitos nocivos da desaceleração, o que já vem fazendo com algum grau de improviso. O que os gastos públicos podem fazer é importante, desde que não se espere milagres deles e o dinheiro seja gasto tempestivamente e de forma adequada. O único item que escapou quase ileso dos resultados negativos do PIB foi o consumo do governo, que cresceu 5,5% em 2008 e 0,5% no quarto trimestre. Ele foi superior ao crescimento do PIB e nem por isso as atividades econômicas escaparam da forte queda observada.
Já havia urgência para a execução de investimentos para melhorar a infraestrutura antes da crise. Agora, eles são ainda mais necessários. Falta a outra perna, a dos estímulos fiscais, que não deveriam ser dados a conta-gotas, para setores escolhidos por critérios nem sempre claros, mas horizontalmente, em especial os que podem ter impacto na manutenção dos empregos. Ainda assim, os gastos públicos cresceram mais na direção errada - aumento do custeio e salários do funcionalismo - e menos nos investimentos, por isso há limites para avançar na política fiscal. Sobra espaço de manobra, como fica cada vez mais claro, na política monetária. Juros menores aliviariam a carga da dívida na hora em que os gastos precisam crescer e que a arrecadação cai. Com mais investimento, menos juros e contenção no custeio, é possível amenizar o rude golpe no crescimento.



Pascal Lamy, FOLHA 24-05-09
O comércio é parte da solução para a crise
A CRISE econômica que o mundo enfrenta é a mais grave em várias gerações. A situação é muito séria e ainda vai piorar antes de começar a melhorar. À medida que a economia mundial se deteriora, os responsáveis pela formulação de políticas recorrem a todos os meios disponíveis para lutar contra a redução da produção, a alta do desemprego e a apatia da demanda.O comércio, dentro do contexto de um sistema de normas acordadas em nível mundial, vem exercendo efeito multiplicador sobre o crescimento há mais de meio século. E o sistema internacional de comércio, supervisionado pela OMC (Organização Mundial do Comércio), vem sendo uma eficaz apólice de seguro contra o protecionismo. A abertura do comércio contribuiu em grande medida para tirar centenas de milhões de pessoas da pobreza extrema e para melhorar as relações entre os países. ... ... ... .... ... ... ...


FOLHA, 03-12-2009
MICHAEL PETTIS
Desvalorizações ameaçam guerra comercialOs países que não puderem desvalorizar suas moedas para se manter competitivos vão reagir com protecionismo
A DECISÃO do Vietnã de desvalorizar sua moeda em 5%, a fim de se proteger contra a subvalorização do yuan, e a resposta da Tailândia e de outros países asiáticos sugerem que talvez já se tenha tornado impossível impedir um conflito comercial mundial. Enquanto um grupo de países tenta ganhar ou manter vantagem comercial via manipulação da taxa de câmbio, os precedentes históricos sugerem que as nações que não forem capazes de promover desvalorização reagirão por meio de protecionismo -e, como consequência, o comércio mundial sofrerá. ... .... ... ...


A EXUBERÃNCIA IRRACIONAL DA AL
por Ernesto Talvi
VALOR ECONÔMICO, 18-11-2013
A América Latina se aproxima do fim de um ciclo extraordinário de crescimento que transformou boa parte do continente, principalmente seus países exportadores de commodities. Mas, com o arrefecimento do surto de crescimento, uma fragilidade profunda, debilitante, torna-se cada vez mais notória: os sistemas educacionais inadequados da região. Essa deficiência mina as perspectivas, a estabilidade social e a luta contra a pobreza de mais longo prazo do continente.

Esses sinais foram camuflados nos últimos anos por dados de PIB que abocanharam as manchetes. De 2004 a 2011 (excetuando-se o ano de crise de 2009), a região quase dobrou sua taxa de crescimento média de longo prazo. Esse período de expansão foi ainda mais notável por ter-se seguido a meio século de relativo declínio, e se caracterizou como um intervalo em que a renda per capita da América Latina, em relação à dos Estados Unidos, caiu dos cerca de 50% observados na década de 1950 para os 23% de 2004.

A aceleração do crescimento econômico, o aumento da renda e a redistribuição de riqueza verificados nos últimos dez anos - alimentados por políticas macroeconômicas saudáveis, pelo investimento externo e pela disparada dos preços das commodities - ajudaram a reduzir os índices de pobreza em 13 pontos percentuais, e os de extrema pobreza em 5 pontos percentuais. Isso expandiu a classe média (definida pelo parâmetro da renda familiar), o que, por sua vez, contribuiu para a região consolidar a democracia.

Se uma boa educação continuar sendo um privilégio da elite, não haverá exuberância irracional suficiente para acobertar a ameaça de longo prazo ao crescimento econômico e à estabilidade política. Uma sociedade justa e próspera precisa de jovens instruídos

Os tempos de vacas gordas também foram aquecidos pela maior facilidade de acesso ao capital de baixo custo, boa parte do qual veio na esteira da crise financeira mundial. Na medida em que os investidores buscavam os retornos mais elevados sobre terras, imóveis, ações, bônus e depósitos bancários passíveis de serem obtidos nos mercados emergentes após 2008, o ingresso de capital na América Latina triplicou, impulsionando os preços dos ativos, o crédito e a demanda agregada.

Agora, quando a perspectiva de alta das taxas de juros nos países avançados gera um movimento contrário dos fluxos de capital, o quadro econômico aparece em toda a sua plenitude - e não se mostra, nem de longe, tão luminoso quanto parecia anteriormente. Quando se excluem dos cálculos de crescimento o investimento externo e a alta dos preços das commodities de exportação, o recente desempenho da economia latino-americana mal ultrapassa sua média histórica habitual. O mesmo pode ser dito sobre as melhorias da produtividade total da região.

Um indicador mais revelador do progresso - ou da falta dele - é a melhoria mínima da educação. Segundo pesquisa recente em 65 países do mundo inteiro, principalmente emergentes, realizada pelo Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa, nas iniciais em inglês), que classifica os países de acordo com seus padrões educacionais, o desempenho de cerca de metade dos alunos latino-americanos de 15 anos ficou aquém dos níveis básicos em matemática, ciências e interpretação de texto. Embora os padrões de 20% dos alunos da parcela mais rica da população de cada região tenha subido ao longo dos últimos dez anos, houve pouca variação naquela faixa de 20% de alunos das classes mais pobres, faixa em que 70% dos alunos não conseguiram alcançar os níveis mais básicos.


Em outras palavras, 50% do total dos estudantes do último ano do ensino obrigatório, antes de ingressar na força de trabalho, não dispõem das qualificações mínimas exigidas pelos empregadores. Para muitos formados, essas lacunas nunca virão a ser preenchidas ao longo da vida.

A fragilidade dos sistemas educacionais da América Latina reforça a visão menos rósea de seu sucesso econômico dos últimos anos - que atribui o sólido desempenho principalmente a condições externas favoráveis, e não ao aprimoramento da produtividade. Na verdade, se medidas pelos níveis de qualificação e não pela renda, as conquistas sociais e econômicas da região - como a tão exaltada expansão da nova classe média - são muito mais frágeis do que se supunha anteriormente.

As consequências de uma mão de obra sem instrução são alarmantes. Os trabalhadores ou são empurrados para o setor informal, onde as proteções trabalhistas básicas inexistem, ou ficam dependentes de ajuda governamental, o que cria um terreno fértil para políticos populistas e para bandidos. O surto de crescimento não teve praticamente qualquer efeito de redução da criminalidade, e pode até ter contribuído para sua expansão, ao atrair os que se sentiram injustamente excluídos da crescente prosperidade que os cercava.

As economias da região estão agora em desaquecimento e a renda está em estagnação; além disso os ingressos de capital de baixo custo deixarão de estimular o consumo dos setores público e privado. O enrijecimento das condições econômicas da América Latina, e da economia mundial de modo geral, acabará obrigando os gastos a voltarem a se alinhar aos lucros. Isso levará à convulsão econômica, esgarçará a rede de segurança social, frustrará as esperanças de uma vida melhor e levará inevitavelmente à agitação social.

Se quiserem evitar esse cenário, os dirigentes políticos têm de examinar o crescimento econômico com vistas ao futuro. O essencial para isso é a compreensão de que uma sociedade justa e próspera precisa de jovens instruídos de acordo com os padrões exigidos por uma força de trabalho moderna. Se uma boa educação continuar sendo um privilégio da elite, não haverá exuberância irracional suficiente para acobertar a ameaça de longo prazo ao crescimento econômico e à estabilidade política. (Tradução de Rachel Warszawski)

Ernesto Talvi é professor-visitante-sênior não residente do programa Economia e Desenvolvimento Mundial da Brookings Institution e diretor da Política Econômica e Social da Iniciativa para a América Latina da Brookings Global-CERES. Copyright: Project Syndicate, 2013.

www.project-syndicate.org


As mudanças no poder global e as perspectivas da América Latina
por Carlos Eduardo Martins.
Temos defendido a tese de que desde os anos 1970 entramos em um contexto de crise civilizatória do capitalismo e da hegemonia dos Estados Unidos. Trata-se de uma crise estrutural e não de um colapso. A crise.....

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