The Holy Grail of the Unconscious
By SARA CORBETT
Published: September 16, 2009
This is a story about a nearly 100-year-old book, bound in red leather, which has spent the last quarter century secreted away in a bank vault in Switzerland. The book is big and heavy and its spine is etched with gold letters that say “Liber Novus,” which is Latin for “New Book.” Its pages are made from thick cream-colored parchment and filled with paintings of otherworldly creatures and handwritten dialogues with gods and devils. If you didn’t know the book’s vintage, you might confuse it for a lost medieval tome. ... ... ... ... .... .... 10 pgs
'Psicanálise é a medicina da alma do nosso século'
Especialistas refletem sobre a obra do pensador, 70 anos após a sua morte; leia aqui entrevista com Elizabeth Roudinesco; leia ainda, no 'Cultura', artigos de Joel Birman, Maria Rita Kehl, Sérgio Telles e Luiz Albeto Hanns
Andrei Netto, correspondente em Paris
PARIS - Poucos intelectuais traduziram tão bem sua época como Sigmund Freud fez com o século 20. Em sua obra, estão expressas as bases de conceitos tão poderosos e, ao mesmo tempo, tão legíveis, que se tornaram parte do cotidiano com a velocidade característica de sua época. É o caso do inconsciente - um conceito já elaborado nos séculos 18 e 19 por autores como Leibniz e Edward von Hartmann. Reinterpretada por Freud, a ideia de que o que falamos pode ter significados ocultos que fogem à esfera da consciência e, portanto, ao nosso domínio, é hoje reconhecível por todos.
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Resumir seu pensamento a esse conceito, porém, é limitar uma obra enérgica e influente, alerta Elisabeth Roudinesco. Psicanalista, historiadora, docente, escritora, discípula de Jacques Lacan, amiga de Jacques Derrida, Elisabeth é, aos 64 anos recém-feitos, um dos pensadores vivos mais importantes de sua área, a psicanálise - um dos legados de Freud à humanidade. Segundo a intelectual marxista, o médico neurologista convertido em gênio está por trás, de uma forma ou de outra, de todas as formas de emancipações vividas pela sociedade do século 20, das quais o feminismo e a liberação sexual são só dois exemplos evidentes.
Além de suas atividades acadêmicas, que a levam a viajar o mundo todo, Elisabeth, uma das intelectuais mais respeitadas da França, se mantém hiperativa como escritora. E no centro de seus interesses está Freud. Ele explicaria a efervescência da autora, que lançará dois novos livros - Histoire de la Psychanalyse en France (La Pochotèque) e Retour à la Question Juive (Albin Michel) - nos próximos dias.
Previsto para outubro, Em Defesa da Psicanálise (Jorge Zahar, 248 págs.) é o seu próximo lançamento no Brasil. Nessa obra, estão reunidos entrevistas e ensaios da autora inéditos no País. Organizados pelo psicanalista Marco Antonio Coutinho Jorge, os textos são de épocas diversas e abordam temas polêmicos: a falta de participação dos psicanalistas na vida pública, a homossexualidade, o antissemitismo e a ciência, além das conexões da psicanálise com a medicina e a filosofia. No livro, a resposta da autora para os que falam da morte da psicanálise é direta: "Que ilusão!"
Em 23 de setembro de 1939, Freud morria em Londres. Às vésperas do aniversário de 70 anos de seu desaparecimento, o Estado pediu ajuda a Elisabeth para esmiuçar a herança de um mestre. Em seu apartamento, em um quartier pequeno-burguês de Paris, na quarta-feira, foram registradas mais de duas horas de entrevista exclusiva. A seguir, sua síntese.
Estamos a 70 anos da morte de Freud. O que ainda é tão representativo em sua obra? Por que ele é uma referência para a própria humanidade?
Ele é o único a ter teorizado, assim como seus herdeiros, o que chamamos de inconsciente. Não falo do subconsciente nem do inconsciente dos psicólogos. Eu me refiro ao inconsciente, que pode ser traduzido pela noção de que, quando alguém fala, não sabe o que diz. Há milhões de exemplos concretos, como o ministro do Interior da França (Brice Hortefeux), que fez declarações racistas na semana passada. Conscientemente, ele não é racista. Inconscientemente, sim. Mas julgamos alguém por seu inconsciente? Sim, se ele é ministro. Mas, via de regra, não podemos enviar alguém aos tribunais por seu inconsciente. Podemos dizer: "Comporte-se!" Muitas pessoas são inconscientemente racistas e antissemitas. Quando não há lei, esses sentimentos se exprimem.
Está no inconsciente? É inexorável?
É inexorável. Freud dizia, com razão, que a única maneira de impedir o crime é a lei, a civilização. No fim do século 19, havia pessoas e governos pública e oficialmente racistas. Não era proibido.
Permita-me retomar a questão: por que Freud ficou marcado como o homem que sintetiza o século 20?
Porque ele aportou algo de novo. Ele estava no prolongamento da filosofia do sujeito. Ele trouxe explicações que a filosofia havia pensado, mas ele lhes deu um assento teórico. E isso não me surpreende. Além disso, Freud permite compreender os dois totalitarismos do século 20: o nazismo, sobre o qual pensou e anteviu melhor do que qualquer outro, e o comunismo, que não teve nada a ver com sua ideia original, com o marxismo. Os dois, aliás, são diferentes: o nazismo se inscreveu desde seu início, sabia-se o que esperar; o comunismo caminhou para o lado errado. Mesmo assim, Freud viu que ele não funcionaria. É verdade que ele era conservador, assim como muitos de seus herdeiros. Mas há muitos freud-marxistas, muitos freudianos de esquerda - que são os meus preferidos, aliás. Nessa época, psicanálise era uma teoria da regeneração do homem, da emancipação. Quatro coisas nasceram ao mesmo tempo: o sionismo, o último movimento de emancipação dos judeus; a psicanálise, que é a emancipação do inconsciente; o socialismo, a emancipação social; e o feminismo, a emancipação da mulher. Era um grande movimento. O século 20, como anteviu Freud, foi o triunfo do contrário - o que pode ser resumido no nazismo. Freud afirmou que o triunfo do contrário já estava lá, entre nós, naquela época. E disse ainda: "Atenção, eu sou a favor da emancipação, mas o homem é habitado pelo contrário disso." Eu creio que ele foi o único a dizê-lo. É um dos motivos pelos quais é o Homem do Século 20. Por outro lado, ele jamais abandonou a ideia do progresso. Freud foi um homem progressista. Contra Schopenhauer, contra os grandes conservadores de seu tempo, contra os que eram inteiramente pessimistas em relação ao progresso, acusando-o de não servir para nada, Freud disse: "Sim, ele serve." Foi por isso que eu o chamei, depois de Adorno e outros, como a "luz sombria", marcada pelo iluminismo, mas sem muitas ilusões. Esse vínculo, o fato de ter pensado a relação entre as duas coisas, o levou a pensar ao mesmo tempo que o pior e o melhor podem acontecer com o homem. Ele nunca foi antiprogressista, ao contrário do que se diz. Por tudo o que mencionei, ele está no centro dos dias de hoje. Você não pode pensar o sionismo, o feminismo, a liberação das mulheres, a transformação da família, sem passar por Freud em determinado momento.
Se Freud é o homem do século 20, qual é o seu lugar no século 21?
É o mesmo. A maioria dos psicanalistas tornou-se conservadora. Não 100%, mas a maioria é conservadora. Por quê? É uma de minhas grandes interrogações. Eu não o sou, e no Brasil eles são menos. Diria até que são menos na América Latina. Mas eles são conservadores por diversas razões. Os lacanianos não deveriam sê-lo, já que Lacan relançou o pensamento da rebelião, da contestação. A Internacional Freudiana tornou-se conservadora porque caiu na repetição do dogma. Eles não se renovaram, tornaram-se um movimento dogmático, centrado sobre a clínica e não sobre a reflexão a respeito da sociedade e do indivíduo. Além disso, cometeram o erro de dialogar demais com as ciências duras, ao crer que o debate sobre o cérebro e os neurônios era essencial. Sempre afirmei que esse debate não era essencial, porque o cérebro e os neurônios não precisam de psicanálise. Não há muito o que fazer com isso, senão dar medicamentos. Mas se a psicanálise se ocupa apenas disso, afastando-se das moeurs (expressão francesa para costumes), ela se torna conservadora, familiarista. Os psicanalistas se desinteressaram dos assuntos sociais. Foi assim que se tornaram conservadores.
Por que a psicanálise brasileira é menos conservadora?
A América Latina, e sobretudo o Brasil, é uma sociedade que espelha a Europa. Os psicanalistas brasileiros são ecléticos. Em alguns momentos são culturalistas, e nos chateiam com a sua brasilidade - não esqueça que houve na França a francilidade e na Alemanha a germanidade. Mas, fora isso, eles, como espelho da Europa, importaram conhecimento. Ao importar, misturaram-no. E o ecletismo dos brasileiros - mais do que dos argentinos, que são menos ecléticos - se formou pegando um pouquinho de Freud, um pouquinho de Lacan e por aí foi. Isso funciona porque questiona o dogmatismo. Eles desconstruíram, para empregar a expressão de Derrida, o dogma europeu.
Voltemos a Freud. Ele não avançou em dois domínios: as crianças e os psicóticos. Por quê?
Sim, ele avançou sobre o tema da infância. Ele nos deu a base da análise da infância. O que se pode dizer é que sua corrente não triunfou no mundo psicanalítico quando se fala em infância, e sim a de Melanie Klein. Nisso, estou completamente de acordo com você. Foi ela quem fundou a psicanálise da infância. No entanto, tudo isso é psicanálise. Ela engloba todas as correntes. Sobre os psicóticos, você tem razão. Freud não acreditava que seria possível analisar os psicóticos. Muito cedo, quando ele compreendeu que essa era a "Terra Prometida" - bem antes da aparição dos medicamentos -, quando ele percebeu que quase todos os seus discípulos eram psiquiatras e trabalhavam com a psicose, ele se desinteressou, embora não tenha desestimulado ninguém. É verdade que é um domínio muito problemático. A análise se faz para os neuróticos. A "cura" analítica funciona muito para os neuróticos, porque, como eles não se curam, se acomodam. E, como transformamos a neurose de fracasso em neurose de sucesso, a cura funciona. A psicanálise torna mais inteligente, mais corajoso, mais apto na sociedade. A psicanálise funciona muito bem. Entretanto, é verdade que não curamos bem a psicose, embora tenhamos nos desenvolvido muito nesse tema também. Os loucos hoje buscam na psicanálise um complemento, já que os psiquiatras só querem saber de medicamentos. Se não há a psicanálise, o paciente vira um legume, um morto em vida.
No início, com Freud, a psicanálise era um processo breve, rápido. Hoje, é o contrário, estende-se por anos, décadas às vezes. O que mudou?
Era rápido porque Freud fazia seis sessões por semana de uma hora. Era intensivo. Há também o fato de que estendemos a análise para domínios não previstos de início, o que a tornou mais difícil. Mudou-se a modalidade da cura, também. Há pessoas que precisam falar sempre, ao longo de sua vida. Mas é verdade que Freud ficaria chocado hoje. Duas vezes por semana, durante 10 anos? Não! Para Freud, era de seis meses a um ano, todos os dias, por uma hora. Quando não era possível, como Marie Bonaparte, tudo bem. Ela ficou 14 anos em análise.
Freud esforçou-se muito para dar à psicanálise o status de ciência, mas ela sempre esteve na alça de mira de cientificistas ortodoxos. Como a psicanálise responde a essas críticas? E por que ela deve ser considerada uma ciência?
Freud oscilou, hesitou muito entre o status de ciência, no sentido de ciência dura - ele queria no fundo que a psicanálise fosse uma "neurologia da alma" - e um outro status, que ele não chamava filosofia, mas ainda assim estava do lado da especulação, da literatura e da filosofia. Ele renunciou completamente e muito cedo ao status de ciência dura, porque se deu conta de que não se tratava de uma ciência no sentido que se conhece. Logo, é preciso inscrever a psicanálise no registro das ciências humanas. É uma ciência, no sentido da racionalidade, mas não no mesmo sentido da biologia e da neurologia. Freud se dividia entre as duas concepções. Não estamos mais no tempo do darwinismo, e a biologia é reconhecida como uma ciência, uma ciência da natureza. A psicanálise não o é de modo algum. Não tem metodologia, resultados ou a positividade das ciências duras. É uma ciência mais próxima das Humanas, como a Antropologia, a Sociologia, a História. Mas mesmo essa concepção, a de parte das ciências humanas, já foi contestada.
O pensamento de Freud é íntegro e poderoso ainda hoje? Sua força criativa ainda é existe?
Sem dúvida. Creio que vamos assistir a um grande retorno a dois pensadores, inclusive: Marx e Freud. Não ao comunismo e à psicanálise, mas a Marx e Freud. Autores como Marx, Freud, Nietzsche e toda a filosofia da rebelião se tornaram malditos nos últimos 20, 30 anos, quando caímos em um estado de neoconservadorismo. A crise econômica, em especial como a que se passou nos Estados Unidos, vai desempenhar um papel considerável. Vamos voltar ao pensamento da rebelião.
Como as ideias de Freud retornarão? Com que aplicação?
Retornarão com as de Marx. Mas não sei como serão aplicadas. O que está voltando com muita força é a ideia de que temos um inconsciente, de que o desejo é capital. A psicanálise, bem pensada, permite compreender a moeurs, o inconsciente, o desejo e a sexualidade de uma forma inteligente. É uma teoria do desejo, afinal.
A senhora vê conceitos de Freud confirmados pelos progressos da ciência ou por novas tecnologias?
Não. Os progressos da ciência são os progressos da ciência. Nenhum dos conceitos de Freud é confirmado pela biologia. São dois domínios diferentes. A psicanálise é a medicina da alma. É especial.
Assim como a psiquiatria, em sua origem?
Hoje não há mais psiquiatria. E, logo, nos damos conta de que existem cada vez mais loucos. Porque são usados apenas medicamentos, ela não funciona mais. É útil, mas não resolve. É muito interessante o que se passou na psiquiatria. Biologizaram-na. Até então, era um equivalente da psicanálise. Era uma medicina da alma. Mas a deslocaram para a biologia. Curamos a loucura? Não. Acalmamos os loucos? Sim. Vivemos um recuo de 50 anos com a psiquiatria "biologizada".
A obra de Freud é marcada por sua didática, sua clareza. E esse não me parece ser o caso dos pensadores da psicanálise contemporânea. De onde vem esse problema de comunicação?
Esse problema é enorme. Os psicanalistas escrevem em clichês. Mesmo que Lacan seja um autor difícil de ler, não se trata de um clichê. Além disso, mesmo que os seguidores de Lacan escrevam em secto, os freudianos também o fazem. Freud era um autor claro, o que influenciou todo o movimento psicanalítico. Hoje, quando leio psicanalistas freudianos norte-americanos ou ingleses fico impressionada com os clichês que estão presentes. É um símbolo muito grave de encerramento sectário. Quando os intelectuais se fecham em torno de si mesmos, eles falam a linguagem de uma tribo. No interior, a tribo se compreende. Eu sempre compreendi a tribo, mas não posso escrever como ela. Não sei fazer. Sou muito clara. Às vezes os antropólogos e sociólogos que queriam se divertir me perguntavam se eu, como psicanalista, não me sentia como o antropólogo que chega à Melanésia e que deve decifrar a linguagem da tribo. É uma alegoria exata. Eu decifro facilmente essa linguagem. Mas para você, que a lê, não deve ser fácil. A psicanálise é mais afetada pelos clichês que a filosofia, por exemplo.
O meu ponto é: se o problema da clareza da comunicação existe, o que torna a psicanálise tão popular em todo o mundo?
Ela é popular em todo o mundo, mas o é de uma forma inconveniente. Por exemplo, ela é popular em muitos países, infelizmente, pela forma da psicologia interpretativa dos chefes de Estado. Eu recuso todos os pedidos de entrevista sobre as fantasias dos chefes de Estado. Mas isso a TV adora, sob a forma da psicologia. Todos os antifreudianos, todos os que não gostam da psicanálise, dirão que ela está em todo lugar. Sim, os psicanalistas estão em todo lugar, mas sob que formas! É ridículo!.
Década de 20 marca presença profissional de Freud no País
Psicanalista Renato Mezan relata a história da psicanálise no Brasil, cujo pioneiro foi Durval Marcondes
Renato Mezan, especial para o Estado
Sebastião Moreira/AE
Renato Mezan, psicanalista e professor titular da PUC/SPSÃO PAULO - As primeiras referências às ideias de Freud por parte de psiquiatras brasileiros são contemporâneas da publicação dos seus artigos em revistas científicas alemãs, ou seja, datam do fim do século 19 e dos anos iniciais do 20. Isso porque, dado o prestígio da medicina germânica, muitos brasileiros faziam seus estudos na Alemanha ou em Viena, e se mantinham atualizados assinando os periódicos lá editados.
Com uma exposição sobre o novo método feita em 1899 por Juliano Moreira, da faculdade do Rio de Janeiro, pouco a pouco vão surgindo menções aos trabalhos de Freud, porém sem destaque especial: é mais um entre os autores citados, assim como Krafft-Ebing, Bleuler ou Kraepelin. Aqui e ali, temos notícias do emprego de técnicas freudianas na prática clínica, mas sempre isoladamente e sem continuidade.
Na década de 1920, a influência das vanguardas europeias sobre os modernistas abre outra via para a penetração das ideias psicanalíticas: no Manifesto Antropofágico, Oswald de Andrade se serve de algumas delas, e Mário de Andrade chegou a sugerir o termo sequestro para verter o nome do principal mecanismo de defesa proposto por Freud (Verdrängung, depois traduzido como repressão ou recalque). Sai um ou outro artigo na imprensa, ouve-se uma que outra conferência, do mesmo modo como se fala do surrealismo ou do tango: a psicanálise é mais um assunto para as conversas de salão, sem prejuízo do emprego de tal ou qual aspecto dela em determinado caso atendido por um profissional.
É com Durval Marcondes que tem início um esforço mais consequente para que as ideias freudianas deixem de ser apenas mais um item no cardápio intelectual. Ele se põe em correspondência com Freud, funda uma Revista Brasileira de Psicanálise (que teve um único número, em 1928), organiza em São Paulo a Sociedade Brasileira de Psicanálise (ainda em 1927), e busca trazer para a cidade um analista didata, capaz de realizar análises de verdade e assim formar um primeiro grupo de psicanalistas locais.
À sombra de Melanie Klein, com a chegada da dra. Adelheid Koch à capital paulista, no ano de 1937, encerra-se a fase diletante da psicanálise brasileira, e tem início um novo período, que a meu ver se estende até meados da década de 1970. Ele se caracteriza pela formação de Sociedades de Psicanálise em diversas capitais; à medida que atingiam determinados padrões, eram aceitas como filiadas pela Associação Internacional de Psicanálise (IPA, da sigla em inglês).
Quem quisesse se tornar psicanalista devia seguir um curso de formação nestas associações, de cujo currículo faziam parte os principais escritos de Freud. A maneira pela qual eram lidos, porém, era tributária de desenvolvimentos mais amplos no interior da disciplina, tanto técnicos quanto políticos. Refiro-me ao fato de que depois da guerra muitos latino-americanos vão se formar na Inglaterra, onde tomam contato com o círculo de Melanie Klein e acabam adotando o estilo clínico que ela inaugurou.
O kleinismo torna-se assim a corrente predominante nas sociedades brasileiras; Freud vai aos poucos se convertendo numa espécie de pai fundador, um vulto venerado a cujo retrato na parede se fazem as reverências de praxe, mas sua obra passa a ser considerada como algo de importância "histórica", com que se tem a mesma relação que com os clássicos da arte e da literatura. Na clínica, porém, empregam-se as ideias de Klein e de seus discípulos.
Assim, durante as décadas de 1950 e 1960, a metrópole psicanalítica para os brasileiros é Londres. A publicação dos três volumes da biografia de Freud escrita por Ernest Jones, assim como dos primeiros volumes da nova tradução inglesa dos Gesammelte Werke por James e Alix Strachey - empreendimento que consumiu muitos anos de trabalho, e resultou nos 24 tomos da Standard Edition of the Complete Works of Sigmund Freud - estimulou alguns analistas do Rio de Janeiro a verter para o português os escritos do mestre. Mas a opção de os traduzir da Standard, e não do original, resultou num trabalho sem coerência na terminologia e eivado de erros.
O fato de a Edição Standard Brasileira - realizada com boa vontade, porém sem qualidade literária nem científica - ter sido recebida sem críticas diz bastante sobre a posição secundária de Freud nas referências dos analistas brasileiros de então: se os textos da escola kleiniana tivessem sido traduzidos com a mesma displicência, com certeza a reação teria sido outra. Somente com as novas condições mencionadas mais adiante é que se percebeu como era ruim o texto disponível na nossa língua.
Nas mesmas décadas, mas ainda sem impacto sobre a psicanálise em nosso país, Jacques Lacan estava empreendendo na França o chamado "retorno a Freud". O estudo minucioso dos textos, frequentemente no original alemão, resultou para os seguidores de Lacan numa grande familiaridade com o pensamento do mestre de Viena, e na transformação dele num interlocutor tanto para a teorização quanto para a prática clínica, o que não era o caso nos países de língua inglesa.
A partir de 1970, as doutrinas lacanianas começam a ser divulgadas na América Latina, em especial na Argentina. Os profissionais platinos que vinham para cá - primeiro como conferencistas visitantes, e após o golpe de 1976 como emigrados políticos - traziam na bagagem uma nova visão da obra freudiana, influenciados como estavam pelo prestígio de que ela passara a desfrutar na França. Durante a década de 1980, retornam ao país vários analistas formados naquele país, ou na universidade belga de Louvain, então um importante centro lacaniano. Eles trazem consigo um conhecimento e uma valorização de Freud que muito contribuíram para a maior difusão do seu pensamento nas plagas tropicais. Em alguns novos cursos de formação para psicanalistas - como o do Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo - o corpus freudiano se torna o eixo central dos estudos, o que ainda hoje contrasta com o programa de corte mais britânico em uso nas sociedades filiadas à IPA.
Por fim, para compreender a situação atual de Freud na cultura brasileira é preciso mencionar três outros processos ocorridos nos últimos 30 anos. Em primeiro lugar, a crescente solicitação por parte da mídia para que psicanalistas expressem sua opinião acerca de comportamentos, atitudes, declarações de autoridades políticas e científicas, crimes particularmente hediondos, e outros fatos da vida social. Nesses comentários, frequentemente é citada alguma ideia do fundador da disciplina, e isso contribui para que o grande público se familiarize com conceitos como o de inconsciente, complexo de Édipo, perversão, e assim por diante.
Em segundo lugar, a presença da psicanálise nos cursos de pós-graduação em psicologia e filosofia deu origem a muitas teses de boa qualidade, que por sua vez - terceiro processo - vêm sendo publicadas por editoras especializadas. Nelas, e portanto nos livros a que dão origem, são frequentes as referências a Freud, e discussões acerca das suas implicações para o assunto tratado.
Sinal de uma exigência congruente com o novo papel da obra freudiana no pensamento dos analistas brasileiros é a decisão da Editora Imago de encetar uma nova tradução dela, desta vez com critérios adequados e a partir do original alemão. Sob a coordenação de Luiz Alberto Hanns, até o momento já saíram três do total de volumes projetados. As excelentes notas explicativas, e a qualidade da tradução, com certeza a tornarão um instrumento de trabalho utilíssimo para os psicanalistas, pesquisadores e demais interessados em conhecer o que Freud realmente disse.
Para concluir: além das constantes citações em artigos, livros e conferências, esse contato mais íntimo com a obra fundadora da psicanálise vem influindo no modo como os profissionais conduzem seu trabalho clínico. A capacidade dos escritos de Freud para inspirar reflexões sobre os mais variados aspectos da vida psíquica, assim como para fornecer pistas que permitem compreender fenômenos dos quais ele não tratou explicitamente, parece dar razão ao psicanalista francês André Green, o qual, questionado certa vez sobre o que havia de novo em psicanálise, respondeu sem hesitar: "Freud."
* Renato Mezan é psicanalista, professor titular da PUC/SP, autor de várias obras sobre Freud e a psicanálise. O texto aqui publicado é parte de um livro sobre o pensamento alemão a ser lançado em 2010 pelo Instituto Goethe de São Paulo, que gentilmente permitiu sua divulgação antecipada
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By ROBIN MARANTZ HENIG
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