Com base na análise de casos recentes, ÉPOCA lista as modalidades de corrupção mais comuns no Brasil – e propõe ideias para diminuir a roubalheira
Com a mudança, penas para políticos corruptos aumentariam. Proposta teve apoio de 99% das pessoas que votaram em enquete no site do Senado
NTREVISTA DA 2ª - MODESTO CARVALHOSA
ADVOGADO E PROFESSOR DIZ QUE 'NA PRÁTICA' A CASSAÇÃO DE POLÍTICOS FOI ABOLIDA, DANDO MAIS ESPAÇO PARA CORRUPTOSJOÃO BATISTA NATALICOLABORAÇÃO PARA A FOLHA
A corrupção vem crescendo no Brasil, nas últimas duas décadas, porque o Congresso, na prática, aboliu as cassações de mandato como forma de punição. É o que diz Modesto Carvalhosa, que na próxima quinta-feira completa 80 anos.
Em meio a uma dezena de obras que publicou, sobretudo em direito societário e comercial, Carvalhosa coordenou as 493 páginas de "O Livro Negro da Corrupção" (1995), centrado nas revelações que levaram à queda, em 1992, do então presidente Fernando Collor de Mello.
Modesto Carvalhosa foi professor de direito comercial na USP, presidente do Condephaat (1984-1987), quando foi tombada a Serra do Mar, consultor da Bovespa e presidente do Tribunal de Ética da OAB-SP. Também presidiu a Associação de Docentes da USP, liderando em 1978 uma greve contra o regime militar.
Sua publicação de maior fôlego foram os quatro volumes dos "Comentários à Lei das Sociedades Anônimas", publicados em 1977 e atualizados em sucessivas edições até o ano passado.
O professor e advogado é homenageado em documentário de 45 minutos produzido por sua filha Sofia.
O filme passará em duas sessões na próxima quarta-feira, no MIS (Museu da Imagem e do Som), às 21h e às 22h. Os ingressos são gratuitos, mas para a primeira sessão eles já estão esgotados.
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UM PAÍS QUE FAVORECE MAIS OS DESVIOS QUE A ROTA PRINCIPAL
por Gleise de Castro
Eduardo Giannetti avalia que relação estabelecida entre o setor público e o privado ampliou as possibilidades de malversação
VALOR ECONÔMICO, 25-11-2013
[Claudio Belli/Valor / Claudio Belli/ValorGiannetti: "O que se pode mudar no curto prazo é o espaço de oportunidades para que as pessoas façam coisas socialmente indesejáveis"]
Os escândalos de corrupção que se sucedem no Brasil são resultado não só de falta de fiscalização e punição, mas, principalmente, das inúmeras oportunidades com que pessoas e empresas se deparam para obter vantagens ilícitas. Burocracia, sistemas de regulação e legislação tributária labirínticos fornecem um amplo cardápio de oportunidades. "Se demora 450 dias para um licenciamento de uma obra em São Paulo, isso abre oportunidades de negociação", exemplifica o economista e filósofo Eduardo Giannetti da Fonseca, em entrevista ao Valor.
Esses fatores, somados à rigidez de normas trabalhistas, colocam também à margem da lei uma grande quantidade de empresas e condenam milhões de pessoas a uma situação irregular de emprego. A solução para a informalidade, diz Giannetti, passa por simplificação tributária, possibilidade de contrato de trabalho voluntário e mecanismos de mediação que não dependam da Justiça, para acelerar os processos. Para combater a corrupção, é preciso acabar com as oportunidades de tirar proveito de situações "em que a probabilidade de ser pego é baixa e a punição, improvável".
Valor: Novos casos de corrupção se sucedem a cada dia, envolvendo todas as esferas de governo. Devemos ficar pessimistas sobre a ética empresarial no Brasil? A corrupção aumentou ou o fato de esses casos virem à tona sugere algum avanço?
Eduardo Giannetti: É difícil avaliar objetivamente se a corrupção aumentou ou se está se apurando melhor. Desde que eu me lembre, o Brasil sempre viveu ondas de denúncias. O que diferencia a experiência brasileira de corrupção é que os escândalos têm início, mas não há punição no fim. Como regra, toda vez que acontece um escândalo, uma de duas coisas deve acontecer. Ou quem foi investigado e foi apurado que cometeu o delito é punido, ou quem fez a ligação e não conseguiu provar também tem um custo. O que chama muito a atenção no Brasil é que isso nunca acontece. Os escândalos terminam sem nenhum desfecho visível de punição ou de condenação de quem fez a ligação falsa.
Valor: A sensação de impunidade é grande.
Giannetti: Exatamente. A corrupção vai acabar quando a pessoa que comete o delito tiver medo, porque a probabilidade de ser pego é alta e o custo de ser pego é alto. No Brasil, a probabilidade de ser pego é baixa e o custo, para a grande maioria, é nulo. Acaba-se chegando ao pior dos mundos, que é uma máxima latina, que diz que o crime de sucesso é virtude. Mas se tantos escândalos se sucedem é sinal de alguma coisa de errado nas instituições. O que é razoável esperar de qualquer pessoa depende de duas variáveis: do seu caráter e das oportunidades com que se depara. O caráter das pessoas não vai mudar. O que pode mudar é a margem de oportunidade com que elas se deparam para obter ganhos ilegítimos. No Brasil, pelo tipo de relação que temos entre o setor privado e o setor público, se ampliaram muito as possibilidades de malversação.
Valor: A situação, então, piorou?
Giannetti: Piorou, porque temos um modelo intervencionista, em que o Estado cede à pressão empresarial e começa a fazer um microgerenciamento da economia, em que as regras vão mudando permanentemente e abrem espaço para muita negociação e práticas indevidas.
Valor: O senhor está otimista com a nova lei que pune as empresas envolvidas em corrupção?
Giannetti: Lei o Brasil sempre teve. O problema é cumprir a lei. As leis brasileiras, no papel, em geral são muito avançadas. O que nos falta é conseguir fazer com que elas se tornem realidade e comportamento. Temos muita dificuldade no Brasil de cumprir o marco legal. Há duas coisas, o máximo moral e o mínimo legal. Não chegamos ao mínimo legal ainda.
Valor: O senhor acredita que essa nova lei possa levar empresas a aplicar valores éticos que vigoram lá fora, e que são aplicados pelas multinacionais?
Giannetti: Há uma percepção maior de que é preciso ter práticas internacionais de transparência e cumprimento da lei. Isso se repete no Brasil, pelo menos nas multinacionais. Se você der para a empresa as opções de ser bem-sucedida dentro da lei e ser bem-sucedida descumprindo a lei, tenho certeza de que todas preferirão ser bem-sucedidas dentro da lei. Isso é um risco para o negócio. Um exemplo é a Enron, que destruiu um patrimônio de bilhões de dólares por não ter cumprido a lei. O que explica as diferenças no grau de adesão às normas de convivência não é só a fiscalização e o risco de punição. Tem uma coisa que se chama identificação, que são valores morais normalmente construídos na convivência familiar e sentimentos como culpa, remorso e arrependimento. Na cultura asiática, a pessoa pega em um ato de corrupção fica socialmente e internamente tão deprimida que muitas vezes se mata. No Brasil, se candidata de novo. Outro fator é a internalização, o sentimento de que essas normas não existem para punir e restringir as pessoas, mas para que todos nós possamos viver melhor e ter uma sociedade mais próspera e mais harmoniosa. Aí é um processo educacional. Depende de um entendimento, de uma capacidade do intelecto, que avalia e aprecia o cumprimento da norma. Por que uma pessoa que pode infringir impunemente uma regra de trânsito não o faz? Ou porque ela vai se sentir mal com ela mesma ao fazê-lo, ou porque entende que aquela regra de trânsito é importante para todos. Se só a fiscalização bastasse, algumas situações não aconteceriam. Por exemplo, um país tão organizado quanto os EUA não foi capaz de fazer com que a lei seca se tornasse uma prática da sociedade, porque não havia identificação e internalização em relação a ela. Você tem isso com drogas hoje. Por mais fiscalização e punição, não desaparecem. Há um limite para o que a lei pode conseguir fazer. Você não vai mudar no curto prazo o modo como as pessoas são. O que você pode mudar no curto prazo é o espaço de oportunidades pa ra que elas façam coisas socialmente indesejáveis.
Demora de 450 dias para licenciar uma obra em São Paulo abre muitas oportunidades de negociações
Valor: O que significa esse espaço de oportunidades?
Giannetti: Se o setor privado depende muito de interface com o Estado para funcionar, isso abre oportunidades. Se os recursos tributários que são arrecadados localmente vão até Brasília para voltar de novo, isso abre muitas oportunidades de desvio no caminho. Se demora 450 dias para um licenciamento de uma obra em São Paulo, isso abre muita oportunidade de negociação. Num país normal, numa cidade normal, demora 70 dias.
Valor: A burocracia, então, é outro fator?
Giannetti: Sem dúvida. Todo mundo quer criar dificuldade para vender facilidade. É uma regra muito antiga da vida pública brasileira. Criar leis labirínticas que ninguém domina plenamente e sempre vai ter alguma coisa para você trocar no varejo. Quem é que tem plena confiança hoje no Brasil de que está recolhendo devidamente todos os tributos devidos? Ninguém. Qualquer fiscal da Receita pode descobrir alguma coisinha que não está direito. Pronto, abriu uma frente de possibilidade de corrupção. Por que uma empresa de tamanho médio no Brasil demora 2.600 horas/ano para recolher os impostos devidos? Num país normal, demora 180 horas/ano.
Valor: As empresas têm de montar um departamento só para isso.
Giannetti: E mesmo assim elas não têm a garantia de que estão cumprindo tudo. Porque é tão labiríntico, é tão complexo, que um fiscal da Receita pode descobrir alguma coisa, sem que a própria empresa saiba. Você não pode ter um acordo trabalhista voluntário com um funcionário. Mesmo que as duas partes estejam de acordo quanto ao término e os valores de encerramento de um contrato, se não passar pela Justiça do Trabalho, não tem validade legal. Isso torna o Brasil campeão de ações trabalhistas. São 3 milhões de ações por ano.
Valor: Entre a reforma do Judiciário e a reforma política, qual a mais importante para ajudar a promover a ética?
Giannetti: Especificamente no campo da ética, a reforma do Judiciário é fundamental. Temos que ter mais segurança jurídica. A impressão que dá é que há duas justiças. A Justiça do cidadão comum e a Justiça de quem pode pagar advogado e a indústria dos recursos protelatórios.
Valor: Comparando o momento histórico atual, em que os negócios se tornaram globais, com o de 50 a 60 anos atrás, o senhor diria que as empresas se tornaram mais ou menos éticas? Os valores mudaram? A vigilância aumentou?
Giannetti: É muito difícil fazer comparações históricas. O que existe hoje é um nível de monitoramento e de informação rápida que antigamente não havia, com as redes sociais, a informática, a digitalização, a internet. Isso torna as empresas muito mais visadas. Uma empresa que cometer uma prática trabalhista indevida e for pega, mesmo que não seja punida pela lei, será punida pelo consumidor. O boicote é um mecanismo muito interessante de pressão. Grandes multinacionais foram pegas fazendo coisas que não deveriam em relações de trabalho e sofreram enormes perdas. Não porque foram punidas legalmente. Mas porque isso se espalhou rapidamente e a pressão do mercado consumidor foi brutal. Outra pressão importante é a do mercado de capitais. Hoje, há grandes investidores institucionais que exigem padrões de governança. Nesse ponto, houve uma mudança real. Essas informações circulam com muita rapidez. Num país em que o Judiciário é tão inoperante, esse é um mecanismo que não depende da burocracia, da lentidão, da indústria dos recursos. Também em relação ao meio ambiente, ao aspecto ético de como a empresa está lidando com os recursos naturais. Muitos investidores institucionais exigem balanços de carbono e compromissos de sustentabilidade ambiental.
Valor: A pressão das mídias sociais surte mais efeito?
Giannetti: Elas são mecanismo adicional de monitoramento e controle. Mas economia de mercado exige normas. Todos os mercados requerem algum grau de regulamentação e de fiscalização.
Valor: Qual o mercado mais vulnerável no Brasil?
Giannetti: É difícil dizer se há um mercado especificamente... O que há no Brasil, e que é muito grave, é a informalidade. Nós temos um segmento muito grande da economia brasileira que está à margem das leis. Temos dezenas de milhões de brasileiros sem uma situação regular de emprego. São setores de baixíssima produtividade, que trabalham com um horizonte de decisão muito curto e que nos condenam a viver pior do que poderíamos estar vivendo. Uma informalidade tão ampla é sinal, de novo, de que tem alguma coisa institucionalmente errada.
Valor: Se o senhor fosse presidente do Brasil, começaria mudando o quê?
Giannetti: Primeiro devemos perguntar por que dezenas de milhões de brasileiros não conseguem encontrar uma situação regular de emprego e o que é preciso fazer para que essas pessoas entrem na normalidade de uma vida social organizada. Isso passa por simplificação tributária, eventualmente pela possibilidade de contrato de trabalho voluntário, sem essas complexidades intratáveis da CLT, por mecanismos de mediação que não exijam recorrer à Justiça e que possam acelerar os processos. Tem muita coisa para fazer no Brasil. Eu iria seriamente tentar reduzir ao máximo essa informalidade. Nós precisamos chegar a um mínimo legal em tudo.
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CORRUPÇÃO SILENCIOSA
por Jorge Arbache
Ela fomenta a noção de que práticas condenáveis dos prestadores de serviços são algo inevitável, alimentando desconfiança generalizada em relação às instituições públicas
VALOR ECONÔMICO, 19-11-2013
Qual é a relação entre aumento da incidência de infecções tratáveis, abandono da escola pelas crianças, baixa produtividade e corrupção? Em princípio, nenhuma. Isto porque a corrupção, como a conhecemos popularmente, é identificada como desvios de conduta envolvendo políticos ou servidores públicos e quantias vultosas em troca de favorecimento de interesses de terceiros. Não por acaso, os debates públicos e as políticas anticorrupção têm sido talhadas para dar conta desse tipo de prática.
Mas, por reconhecerem a influência da corrupção na disponibilidade de recursos destinados à prestação de serviços públicos, estudos recentes passaram a dedicar maior atenção à detecção de práticas corruptas nas linhas de frente da prestação daqueles serviços. Amparados por uma nova geração de pesquisas de campo sobre qualidade da prestação de serviços públicos, os estudos acabaram por identificar relações ainda mais complexas. Emergiram evidências de vários tipos de práticas que nem sempre envolvem trocas de dinheiro, mas que, ainda assim, podem ser consideradas desvios de conduta. Dentre elas, incluem-se desvios observáveis, como o absenteísmo, e desvios difíceis de observar, como falta de comprometimento com o trabalho, omissão e uso de informações privilegiadas ou de influência do cargo para burlar ou influenciar regras e procedimentos em benefício pessoal.
Esses desvios de comportamento dão lugar a uma discussão mais abrangente sobre corrupção. A "corrupção silenciosa", que consiste em desvios da conduta esperada, não envolve trocas monetárias e geralmente é pouco notada, mas pode ter efeitos deletérios significativos para indivíduos, famílias e até para toda uma nação. A forma convencional ou "ruidosa" de corrupção seria apenas a "ponta do iceberg", enquanto a corrupção silenciosa situa-se abaixo da superfície e trata de questões complementares às formas mais visíveis de corrupção. Afinal, como classificar evidências de que um elevadíssimo percentual de professores primários de países da África não comparece à escola, ou, se comparece, não está em sala de aula nos horários designados? O desvio do comportamento esperado dos prestadores de serviços amplia, justificadamente, a noção de corrupção.
Mais gastos do governo não incorrem necessariamente na melhoria dos serviços públicos
A analogia do iceberg é útil para trazer à tona outras características da corrupção silenciosa. Primeiro, diferente da corrupção convencional, a silenciosa afeta direta e potencialmente muitas pessoas por meio, por exemplo, das interações entre provedores de saúde e pacientes; professores e alunos; policiais e suspeitos; fiscais de obras e construtoras; e fiscais de vigilância sanitária e restaurantes. Segundo, a corrupção silenciosa fomenta a noção de que práticas condenáveis dos prestadores de serviços são algo inevitável, alimentando desconfiança generalizada em relação às instituições públicas. Terceiro, a corrupção silenciosa afeta particularmente os grupos vulneráveis, como pobres, crianças, idosos e deficientes físicos, que são mais dependentes dos serviços públicos. Quarto, a corrupção silenciosa tem, muitas vezes, profundas consequências de longo prazo em nível individual e coletivo. E quinto, a corrupção silenciosa é um fenômeno universal, embora seja mais proeminente em países em desenvolvimento.
A noção de corrupção silenciosa ajuda a explicar porque mais gastos do governo não incorrem necessariamente na melhoria dos serviços públicos e destaca questões fundamentais para o desenho de estratégias e políticas públicas focadas em resultados. Evidências empíricas mostram que absenteísmo, descaso ou mesmo pouco empenho no cumprimento de tarefas e procedimentos básicos por parte de agentes públicos podem ter efeitos permanentes, por exemplo, nas competências cognitivas de crianças, aumento da transmissão vertical do vírus da HIV, elevação da incidência de óbitos por malária, perda de interesse e abandono da escola pelas crianças ou desinteresse pela abertura de empresas e realização de investimentos produtivos.
A boa notícia é que a corrupção silenciosa pode ser enfrentada. O aumento da disseminação de informações sobre orçamentos, projetos, indicadores de resultado e monitoramento pela sociedade civil pode melhorar a qualidade dos serviços públicos, reduzir desperdícios, absenteísmo e vazamento de recursos. Evidências de vários países mostram ser possível melhorar a prestação de serviços quando cresce a determinação do governo em lidar com a corrupção silenciosa.
Embora não exista uma "receita universal" a se recomendar, lideranças comprometidas com o combate à corrupção, aperfeiçoamento das instituições anticorrupção, aumento da transparência e da "accountability", formação de recursos humanos qualificados em governança pública, fortalecimento do "enforcement" e dos controles administrativos e descentralização governamental parecem ser requisitos necessários, embora nem sempre suficientes. A implementação exitosa de reformas anticorrupção também requer que as preferências e os interesses dos envolvidos se alinhem com os objetivos da reforma, o que implica, muitas vezes, a melhoria das condições de trabalho dos agentes públicos.
Embora o combate à corrupção ruidosa seja crítico, o enfrentamento à corrupção silenciosa é crucial para a promoção do crescimento sustentado, redução da pobreza e aumento da produtividade.
Jorge Arbache foi diretor e autor principal do relatório "Silent and lethal: How quiet corruption undermines Africa's development", Africa Development Indicators 2010, Washington, DC: World Bank. É professor de economia da UnB e assessor econômico da presidência do BNDES. Email: jarbache@gmail.com.
UM PAÍS QUE FAVORECE MAIS OS DESVIOS QUE A ROTA PRINCIPAL
por Gleise de Castro
Eduardo Giannetti avalia que relação estabelecida entre o setor público e o privado ampliou as possibilidades de malversação
VALOR ECONÔMICO, 25-11-2013
[Claudio Belli/Valor / Claudio Belli/ValorGiannetti: "O que se pode mudar no curto prazo é o espaço de oportunidades para que as pessoas façam coisas socialmente indesejáveis"]
Os escândalos de corrupção que se sucedem no Brasil são resultado não só de falta de fiscalização e punição, mas, principalmente, das inúmeras oportunidades com que pessoas e empresas se deparam para obter vantagens ilícitas. Burocracia, sistemas de regulação e legislação tributária labirínticos fornecem um amplo cardápio de oportunidades. "Se demora 450 dias para um licenciamento de uma obra em São Paulo, isso abre oportunidades de negociação", exemplifica o economista e filósofo Eduardo Giannetti da Fonseca, em entrevista ao Valor.
Esses fatores, somados à rigidez de normas trabalhistas, colocam também à margem da lei uma grande quantidade de empresas e condenam milhões de pessoas a uma situação irregular de emprego. A solução para a informalidade, diz Giannetti, passa por simplificação tributária, possibilidade de contrato de trabalho voluntário e mecanismos de mediação que não dependam da Justiça, para acelerar os processos. Para combater a corrupção, é preciso acabar com as oportunidades de tirar proveito de situações "em que a probabilidade de ser pego é baixa e a punição, improvável".
Valor: Novos casos de corrupção se sucedem a cada dia, envolvendo todas as esferas de governo. Devemos ficar pessimistas sobre a ética empresarial no Brasil? A corrupção aumentou ou o fato de esses casos virem à tona sugere algum avanço?
Eduardo Giannetti: É difícil avaliar objetivamente se a corrupção aumentou ou se está se apurando melhor. Desde que eu me lembre, o Brasil sempre viveu ondas de denúncias. O que diferencia a experiência brasileira de corrupção é que os escândalos têm início, mas não há punição no fim. Como regra, toda vez que acontece um escândalo, uma de duas coisas deve acontecer. Ou quem foi investigado e foi apurado que cometeu o delito é punido, ou quem fez a ligação e não conseguiu provar também tem um custo. O que chama muito a atenção no Brasil é que isso nunca acontece. Os escândalos terminam sem nenhum desfecho visível de punição ou de condenação de quem fez a ligação falsa.
Valor: A sensação de impunidade é grande.
Giannetti: Exatamente. A corrupção vai acabar quando a pessoa que comete o delito tiver medo, porque a probabilidade de ser pego é alta e o custo de ser pego é alto. No Brasil, a probabilidade de ser pego é baixa e o custo, para a grande maioria, é nulo. Acaba-se chegando ao pior dos mundos, que é uma máxima latina, que diz que o crime de sucesso é virtude. Mas se tantos escândalos se sucedem é sinal de alguma coisa de errado nas instituições. O que é razoável esperar de qualquer pessoa depende de duas variáveis: do seu caráter e das oportunidades com que se depara. O caráter das pessoas não vai mudar. O que pode mudar é a margem de oportunidade com que elas se deparam para obter ganhos ilegítimos. No Brasil, pelo tipo de relação que temos entre o setor privado e o setor público, se ampliaram muito as possibilidades de malversação.
Valor: A situação, então, piorou?
Giannetti: Piorou, porque temos um modelo intervencionista, em que o Estado cede à pressão empresarial e começa a fazer um microgerenciamento da economia, em que as regras vão mudando permanentemente e abrem espaço para muita negociação e práticas indevidas.
Valor: O senhor está otimista com a nova lei que pune as empresas envolvidas em corrupção?
Giannetti: Lei o Brasil sempre teve. O problema é cumprir a lei. As leis brasileiras, no papel, em geral são muito avançadas. O que nos falta é conseguir fazer com que elas se tornem realidade e comportamento. Temos muita dificuldade no Brasil de cumprir o marco legal. Há duas coisas, o máximo moral e o mínimo legal. Não chegamos ao mínimo legal ainda.
Valor: O senhor acredita que essa nova lei possa levar empresas a aplicar valores éticos que vigoram lá fora, e que são aplicados pelas multinacionais?
Giannetti: Há uma percepção maior de que é preciso ter práticas internacionais de transparência e cumprimento da lei. Isso se repete no Brasil, pelo menos nas multinacionais. Se você der para a empresa as opções de ser bem-sucedida dentro da lei e ser bem-sucedida descumprindo a lei, tenho certeza de que todas preferirão ser bem-sucedidas dentro da lei. Isso é um risco para o negócio. Um exemplo é a Enron, que destruiu um patrimônio de bilhões de dólares por não ter cumprido a lei. O que explica as diferenças no grau de adesão às normas de convivência não é só a fiscalização e o risco de punição. Tem uma coisa que se chama identificação, que são valores morais normalmente construídos na convivência familiar e sentimentos como culpa, remorso e arrependimento. Na cultura asiática, a pessoa pega em um ato de corrupção fica socialmente e internamente tão deprimida que muitas vezes se mata. No Brasil, se candidata de novo. Outro fator é a internalização, o sentimento de que essas normas não existem para punir e restringir as pessoas, mas para que todos nós possamos viver melhor e ter uma sociedade mais próspera e mais harmoniosa. Aí é um processo educacional. Depende de um entendimento, de uma capacidade do intelecto, que avalia e aprecia o cumprimento da norma. Por que uma pessoa que pode infringir impunemente uma regra de trânsito não o faz? Ou porque ela vai se sentir mal com ela mesma ao fazê-lo, ou porque entende que aquela regra de trânsito é importante para todos. Se só a fiscalização bastasse, algumas situações não aconteceriam. Por exemplo, um país tão organizado quanto os EUA não foi capaz de fazer com que a lei seca se tornasse uma prática da sociedade, porque não havia identificação e internalização em relação a ela. Você tem isso com drogas hoje. Por mais fiscalização e punição, não desaparecem. Há um limite para o que a lei pode conseguir fazer. Você não vai mudar no curto prazo o modo como as pessoas são. O que você pode mudar no curto prazo é o espaço de oportunidades pa ra que elas façam coisas socialmente indesejáveis.
Demora de 450 dias para licenciar uma obra em São Paulo abre muitas oportunidades de negociações
Valor: O que significa esse espaço de oportunidades?
Giannetti: Se o setor privado depende muito de interface com o Estado para funcionar, isso abre oportunidades. Se os recursos tributários que são arrecadados localmente vão até Brasília para voltar de novo, isso abre muitas oportunidades de desvio no caminho. Se demora 450 dias para um licenciamento de uma obra em São Paulo, isso abre muita oportunidade de negociação. Num país normal, numa cidade normal, demora 70 dias.
Valor: A burocracia, então, é outro fator?
Giannetti: Sem dúvida. Todo mundo quer criar dificuldade para vender facilidade. É uma regra muito antiga da vida pública brasileira. Criar leis labirínticas que ninguém domina plenamente e sempre vai ter alguma coisa para você trocar no varejo. Quem é que tem plena confiança hoje no Brasil de que está recolhendo devidamente todos os tributos devidos? Ninguém. Qualquer fiscal da Receita pode descobrir alguma coisinha que não está direito. Pronto, abriu uma frente de possibilidade de corrupção. Por que uma empresa de tamanho médio no Brasil demora 2.600 horas/ano para recolher os impostos devidos? Num país normal, demora 180 horas/ano.
Valor: As empresas têm de montar um departamento só para isso.
Giannetti: E mesmo assim elas não têm a garantia de que estão cumprindo tudo. Porque é tão labiríntico, é tão complexo, que um fiscal da Receita pode descobrir alguma coisa, sem que a própria empresa saiba. Você não pode ter um acordo trabalhista voluntário com um funcionário. Mesmo que as duas partes estejam de acordo quanto ao término e os valores de encerramento de um contrato, se não passar pela Justiça do Trabalho, não tem validade legal. Isso torna o Brasil campeão de ações trabalhistas. São 3 milhões de ações por ano.
Valor: Entre a reforma do Judiciário e a reforma política, qual a mais importante para ajudar a promover a ética?
Giannetti: Especificamente no campo da ética, a reforma do Judiciário é fundamental. Temos que ter mais segurança jurídica. A impressão que dá é que há duas justiças. A Justiça do cidadão comum e a Justiça de quem pode pagar advogado e a indústria dos recursos protelatórios.
Valor: Comparando o momento histórico atual, em que os negócios se tornaram globais, com o de 50 a 60 anos atrás, o senhor diria que as empresas se tornaram mais ou menos éticas? Os valores mudaram? A vigilância aumentou?
Giannetti: É muito difícil fazer comparações históricas. O que existe hoje é um nível de monitoramento e de informação rápida que antigamente não havia, com as redes sociais, a informática, a digitalização, a internet. Isso torna as empresas muito mais visadas. Uma empresa que cometer uma prática trabalhista indevida e for pega, mesmo que não seja punida pela lei, será punida pelo consumidor. O boicote é um mecanismo muito interessante de pressão. Grandes multinacionais foram pegas fazendo coisas que não deveriam em relações de trabalho e sofreram enormes perdas. Não porque foram punidas legalmente. Mas porque isso se espalhou rapidamente e a pressão do mercado consumidor foi brutal. Outra pressão importante é a do mercado de capitais. Hoje, há grandes investidores institucionais que exigem padrões de governança. Nesse ponto, houve uma mudança real. Essas informações circulam com muita rapidez. Num país em que o Judiciário é tão inoperante, esse é um mecanismo que não depende da burocracia, da lentidão, da indústria dos recursos. Também em relação ao meio ambiente, ao aspecto ético de como a empresa está lidando com os recursos naturais. Muitos investidores institucionais exigem balanços de carbono e compromissos de sustentabilidade ambiental.
Valor: A pressão das mídias sociais surte mais efeito?
Giannetti: Elas são mecanismo adicional de monitoramento e controle. Mas economia de mercado exige normas. Todos os mercados requerem algum grau de regulamentação e de fiscalização.
Valor: Qual o mercado mais vulnerável no Brasil?
Giannetti: É difícil dizer se há um mercado especificamente... O que há no Brasil, e que é muito grave, é a informalidade. Nós temos um segmento muito grande da economia brasileira que está à margem das leis. Temos dezenas de milhões de brasileiros sem uma situação regular de emprego. São setores de baixíssima produtividade, que trabalham com um horizonte de decisão muito curto e que nos condenam a viver pior do que poderíamos estar vivendo. Uma informalidade tão ampla é sinal, de novo, de que tem alguma coisa institucionalmente errada.
Valor: Se o senhor fosse presidente do Brasil, começaria mudando o quê?
Giannetti: Primeiro devemos perguntar por que dezenas de milhões de brasileiros não conseguem encontrar uma situação regular de emprego e o que é preciso fazer para que essas pessoas entrem na normalidade de uma vida social organizada. Isso passa por simplificação tributária, eventualmente pela possibilidade de contrato de trabalho voluntário, sem essas complexidades intratáveis da CLT, por mecanismos de mediação que não exijam recorrer à Justiça e que possam acelerar os processos. Tem muita coisa para fazer no Brasil. Eu iria seriamente tentar reduzir ao máximo essa informalidade. Nós precisamos chegar a um mínimo legal em tudo.
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